Os hábitos de consumo dos portugueses estão a mudar e as compras de artigos em segunda mão têm ganhado escala nos últimos anos. Em 2024, as transações realizadas através de comércio eletrónico no mercado de usados em Portugal - excluindo automóveis - movimentaram um recorde de 800 milhões de euros, revelam os dados do estudo 'O recommerce: Uma segunda vida para as marcas’ da OnStrategy cedidos ao DN que indica que este se trata “de um valor máximo até ao momento e em crescimento”, acompanhando a tendência internacional. A atual conjuntura económica tem estimulado os consumidores a procurarem alternativas mais baratas e o preço é o principal motivo do crescimento das operações, embora os fatores da sustentabilidade estejam a ganhar peso. “A crise mundial incentivou o uso de plataformas de segunda mão para controlar objetos em desuso e o preço é o verdadeiro motor dessa tendência”, explica Teresa de Lemus, partner da consultora. Olhando para a tipologia dos itens mais adquiridos, a moda é o segmento com maior expressão, com os consumidores a procurarem artigos de vestuário e calçado nas plataformas de revenda online. Ainda assim, o luxo e a tecnologia foram os principais impulsionadores deste tipo de comércio.“As primeiras plataformas de transações desse tipo foram de acessórios de luxo em segunda mão, principalmente carteiras e malas de marca - surgiram até plataformas de aluguer desses artigos. Ambas giram em torno da aspiração da marca e do status que ela representa, mas acedendo a um mercado que não tem o poder aquisitivo necessário”, enquadra. A especialista detalha que há um conjunto de fatores que explicam a rápida aceleração no negócio. A pandemia, o aumento do uso do telemóvel e o boom das aplicações facilitaram o crescimento, “tanto pelo aumento do comércio eletrónico em geral, como pela facilidade de recomendação de aplicações ou de upload de artigos, ajudando a completar a jogada com o aumento do número de transações”. “Uma vez que os produtos e os utilizadores estavam lá, surgiu o interesse das marcas. Havia todo um mercado com uma experiência de produto e preço fora do seu controlo e elas souberam encontrar o seu nicho, aproveitando algo que essas plataformas não podiam oferecer: a tendência social cada vez mais preocupada com o meio ambiente, o problema da recolha e a falta de recondicionamento dos produtos. Finalmente, a irrupção no comércio eletrónico de plataformas como Shein ou Temu acentuou também a procura por preços baixos”, enquadra, relembrando que a aplicações como a Wallapop ou Facebook Marketplace “procuraram aproveitar essa lacuna de preço e utilizaram a geolocalização e as opiniões dos utilizadores como ferramentas”Do preço à economia circular.O perfil do comprador de artigos em segunda mão sofreu uma alteração nos últimos anos. Se, numa fase inicial, a possibilidade de comprar um artigo por um valor mais apelativo constituía o principal mote da transação, a evolução do modelo de negócio e das formas de consumo traduziram-se no surgimento de novos perfis neste segmento. “No início, o utilizador típico das plataformas de segunda mão era um consumidor principalmente sensível ao preço, comprava por necessidade ou por convicção financeira, e as plataformas respondiam a esse comportamento com funcionalidades centradas na eficiência transacional: filtros por preço e proximidade geográfica para facilitar entregas sem custos, modelos de mensagens diretas e negociação entre particulares, interface orientada para a rapidez e o volume de ofertas. Esta abordagem configurou o ADN inicial de aplicações como Wallapop, Milanuncios ou Vinted”, elucida Teresa de Lemus. A partner da OnStrategy refere que o fator preço deu lugar a novos perfis, motivações e significados neste tipo de compras com a economia circular e a sustentabilidade a ganharem palco. “Com o passar do tempo, e em paralelo com a mudança cultural sobre o consumo responsável, a compra de artigos em segunda mão passou de ser vista como uma solução económica para uma escolha consciente e valorizada. Hoje, observamos um claro processo de legitimação social, impulsionado pela crescente preocupação com a sustentabilidade e o impacto ambiental, o auge da economia circular como narrativa aceite pelas marcas ou a valorização do que é único, escasso ou descontinuado em oposição ao que é massivo ou genérico. Esta mudança trouxe consigo novos perfis de compradores”, aponta. Para as marcas, acrescenta, é sinónimo de uma nova dimensão estratégica uma vez que lhes permite deixar de olhar para o mercado de segunda mão “como uma ameaça e começar a vê-lo como uma extensão, um novo ponto de contacto da marca”, adianta. .Marcas apostam em plataformas próprias de revenda.A evolução do modelo de negócio dos artigos em segunda mão tem levado a que cada vez mais marcas se posicionem nesta fileira de atividade. Se, antigamente, a compra e venda de artigos usadas estava exclusivamente na mão de vendedores e de compradores, que tratavam das interações nas plataformas e canais exclusivos para os efeitos, atualmente as marcas querem ter uma palavra a dizer e assumir uma posição no mercado. Há cada vez mais insígnias a vender, nos sites oficiais e através de plataformas de marketplace, artigos usados. A IKEA, a FNAC ou a Decathlon são apenas alguns exemplos. “Ao controlarem o seu posicionamento num canal até agora externo, as marcas ganham sobretudo notoriedade, reputação e valor financeiro. As marcas expõem-se ao perder informações reais do mercado ao deixar de interagir com os seus clientes, perdem a possibilidade de garantir uma experiência de marca e de produto e, em última instância, perdem valor de marca. Ao deixar isso nas mãos de terceiros, nem sequer controlam a experiência do utilizador na compra e o facto de esse volume de mercado ser cada vez maior e com transações internacionais obrigou a entrar nesta arena”, justifica Teresa de Lemus. A responsável da consultora internacional especializada na criação, construção e otimização do valor económico e financeiro de negócios e marcas, explica que as insígnias acabam por sair prejudicadas com a venda de artigos em segunda mão no mercado comum uma vez que não têm possibilidade de controlar a experiência. “Há todo um segmento relacionado com os seus produtos, a sua qualidade e o seu preço fora do seu alcance, o que prejudica diretamente os principais impulsionadores dos valores da sua marca”, prossegue, exemplificando: “O facto de o utilizador poder ter uma experiência semelhante de compra e utilização da mesma, mas por um quarto do preço, torna-a acessível e, portanto, perde-se o valor para quem comprou pelo preço real, que é o verdadeiro cliente da marca”, conclui.