Das fábricas portuguesas saem camiões autónomos, drones e materiais para proteção balística

O pacote de 800 mil milhões que a Comissão Europeia quer por no terreno para rearmar a Europa, através da aposta na indústria europeia, é visto como uma oportunidade de ouro para as empresas nacionais
Os drones da Tekever estão a ser usados para recolha de informação na Ucrânia, no Canal da Mancha e em África, entre muitos outros locais
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Bruxelas quer mobilizar um pacote de 800 mil milhões de euros, durante os próximos quatro anos, para reforçar a defesa da Europa, naquilo que se designa já por ‘era do rearmamento’. Portugal deverá ter um papel a desempenhar neste domínio e acredita que o novo quadro geopolítico internacional será uma oportunidade para ajudar a alavancar o crescimento destas empresas, com o consequente efeito na economia, no emprego e nas exportações.

Portugal conta com mais de 380 empresas ligadas à indústria da Defesa, embora, na sua grande maioria, esse seja apenas mais uma das áreas de negócio em que operam. São as chamadas indústrias de duplo uso, que tanto podem servir o mundo militar, como as necessidades civis. Entidades com uma produtividade “bastante superior” à do conjunto das empresas nacionais, pelo facto de investirem muito em investigação, desenvolvimento e inovação, o que permite que sejam uma “alavanca para o crescimento e desenvolvimento da economia nacional, dada a característica e duplo uso que os produtos e serviços têm”, refere Catarina Nunes, vogal da EuroDefense Portugal.

Para esta responsável, as oportunidades que surgem no desenvolvimento de Tecnologias Disruptivas – como Espaço, Big Data, Inteligência Artificial, Autonomia, Cyber, Quantum, Biotecnologia e Novos Materiais –, que implicam muita I&D e Inovação, podem ser uma aposta para as empresas nacionais.

Catarina Nunes lembra que há já empresas nacionais “reconhecidas internacionalmente e que trabalham com grandes construtores” e dá os exemplos da OGMA na manutenção e desenvolvimento na aeronáutica, da EID nas comunicações terrestres e marítimas, do CEiiA na investigação e desenvolvimento ou da Thales Portugal, nos Sistemas e da Tekever nos drones, entre outros. Mas há que “intensificar” estes bons exemplos, admite.

E se é verdade que os últimos 15 anos foram difíceis para a economia portuguesa, face à crise financeira, primeiro, e à pandemia, depois, esta responsável diz, apesar disso, não se deixou de fazer “investimentos estruturantes” no âmbito das capacidades militares. E cita “a aquisição dos aviões KC 390, com tudo quanto implicou de impacto na economia nacional, a transferência de tecnologia da TKMS para a Arsenal do Alfeite, no que se refere à manutenção e reparação dos submarinos da classe Tridente, ou o desenvolvimento da indústria do espaço com grande impacto em todos as capacidades militares”. Entretanto, o quadro geopolítico global mudou, e a Europa percebeu que precisa de assegurar a sua soberania tecnológica, crucial para a Segurança e Defesa dos Estados. Uma oportunidade para as empresas portuguesas e para os diversos centros de inovação que estão já a fazer investigação de duplo uso e a desenvolver tecnologia de topo mundial, acredita.

É verdade que a Indústria da Defesa nacional é pequena, comparativamente a outros países, mas há já bons exemplos de bem saber fazer neste domínio. É o caso da Tekever, fundada em 2001, por ex-alunos do Instituto Superior Técnico, e que é hoje a maior empresa da área de sistemas autónomos da Europa. Com mais de 800 colaboradores divididos por diversos países, designadamente Portugal (Lisboa, Porto, Caldas da Rainha e Ponte de Sôr), França e Reino Unido, tem já novas localizações em vista. Mas, para já, o CEO e co-fundador não as revela.

Ricardo Mendes também não indica quanto fatura a Tekever - mas dados da Informa D&B relativos a 2023, os mais recentes, mostram que holding registou vendas na ordem dos 50 milhões de euros - assumindo apenas que as receitas da empresa duplicaram em 2023 e voltaram a duplicar em 2024. Prefere falar da massa salarial que, só em Portugal, ascendeu, no ano passado, a 25 milhões de euros e deverá, este ano, chegar aos 40 milhões. Mas o plano de crescimento prevê a contratação de mais de 400 pessoas, a nível global, até ao fim do ano.

A Defesa é uma aposta recente na Tekever, que trabalha, sobretudo, na área da Segurança, com contratos com grandes empresas, multinacionais e governos. É o caso do contrato assinado em 2019 com o Ministério do Interior britânico, para a vigilância do Canal da Mancha, seja a nível da pesca ilegal, narcotráfico ou ou tráfico de seres humanos, e que permitiu, desde então “salvar cerca de 100 mil pessoas”. Um serviço de intelligence que fornece, também, multinacionais de Energia em África ou no Canadá, entre outros.

Nascida no mundo do Software e da Inteligência Artificial, a empresa desenvolveu o sistema de mobile banking de um grande banco ibérico e gere os sistemas de estacionamento e das bicicletas partilhadas no município de Lisboa, entre muitos outros. Começou a olhar para o segmento dos drones em 2008 e, desde então, dotou-se das competências necessárias. Hoje conta com “mais de 500 engenheiros, em múltiplas áreas, desde informática, eletrónica, mecânica, aeroespacial, aeronáutica, química ou engenharia de processos” e exporta 98% do que produz. Ganhou uma notoriedade especial, nos últimos três anos, no plano da Defesa com a Guerra na Ucrânia, já que as Forças Armadas ucranianas usam os equipamentos da Tekever quer para a vigilância marítima no Mar Negro quer para missões de longo alcance na frente terrestre. “Não fazemos nada ofensivo. Não levamos mísseis a bordo, só levamos sensores, câmaras, radares, e, de acordo com o que nos dizem as forças ucranianas. Os nossos equipamentos já permitiram a destruição de ativos russos no valor de três mil milhões de dólares”, refere.

Sobre o pacote da Comissão Europeia para a Defesa, Ricardo Mendes admite que é uma oportunidade “enorme”, mas para empresas “com dimensão para abraçar estes desafios”. Portugal tem dificuldade neste domínio da escala, mas pode juntar-se a consórcios, fornecendo componentes a grandes construtores, e integrando cadeias de valor alargadas. E a Tekever tem procurado ajudar. “Em 2024, comprámos 12 milhões de euros a fornecedores nacionais. E, nos próximos três anos, estamos a planear compras no valor de 100 milhões de euros”, diz Ricardo Mendes, que garante: “Estamos completamente disponíveis para ajudar a desenvolver a indústria em Portugal e a trazer outros connosco. Temos um papel aqui a cumprir”.

A atuar numa área diferente, mas igualmente exigente, está a Atlos, unidade de automação do grupo CME - Construção e Manutenção Eletromecânica, SA, que nasceu em 2024 e que desenvolve e comercializa veículos autónomos para a indústria, para transporte de cargas. Estamos a falar de camiões com capacidade de carga de até 14 toneladas e que operam de forma totalmente autónoma. Ou seja, é criada uma determinada missão, que é atribuída a determinado veículo, que se desloca para a respetiva doca, carrega a mercadoria, leva-a ao seu destino e descarrega-a, sem qualquer intervenção externa. O veículo recarregar a bateria autonomamente também.

Esta solução, que está já implementada na fábrica da Continental Mabor, em Lousado, permite “tornar mais segura e mais produtiva” a tarefa, libertando os trabalhadores desta área para outras funções. Além disso, destaca André Pardal, managing diretor da Atlos, são “soluções mais sustentáveis” já que são camiões 100% elétricos, sem quaisquer emissões poluentes, e que substituem os tradicionais camiões a diesel. E tem sido um sucesso, de tal modo que a Continental Mabor encomendou já uma frota de seis veículos destes para se juntarem ao que já tem em operação. Em breve está, também, prevista a instalação de um destes veículos na fábrica da Autoeuropa.

Sobre o mercado da Defesa, André Pardal admite que os veículos da Atlos poderão ser interessantes numa lógica de interlogística. Um dia mais tarde, e se houver interesse por parte do Exército, e se “comercialmente fizer sentido”, a tecnologia pode ser adaptada para o desenvolvimento de veículos teleoperados, por exemplo, para cenários de guerra. “O nosso foco tem sido o mercado nacional, mas o objetivo é escalar estas soluções através da internacionalização, que esperamos começar este ano”, explica este responsável.

Numa área completamente distinta temos a Beyond Composite, especializada em materiais compósitos avançados e que constitui a mais recente aquisição do grupo Sonae, que comprou dois terços do capital da empresa. Fundada por Fernando Cunha e Carlos Mota, em 2018, a Beyond Composite foca-se no desenvolvimento de materiais compósitos leves, mas de alta performance, para as áreas da mobilidade, mas também para o segmento da Defesa e Aeroespacial.

No que se refere à Defesa, a empresa trabalha essencialmente no domínio da proteção de bens e pessoas, ou seja, na proteção balística, seja de viaturas, helicópteros ou soldados. “Operamos numa dimensão de salvar vidas.. Essa é a nossa grande mais-valia e desenvolvemos tecnologia de ponta de Portugal para o mundo”, explica Fernando Cunha, dando conta que esta está devidamente patenteada. E dá exemplos. Uma viatura blindada com os polímeros da Beyond Composite tem “metade do peso, para o mesmo nível de proteção, de uma tradicional, fabricada com aço balístico. O que pode determinar o sucesso de uma operação. “Na indústria militar, o que é importante é que projetarmos autonomia a longa distância. O que nós vimos em teatros de operações recentes é que as viaturas ficavam pelo caminho porque, efetivamente, eram muito pesadas e consumiam todo o combustível que levavam e não tinham capacidade de terminar a operação”, avança.

Já a Beyond Vision, do Porto, assume-se como o mais recente player no mercado dos drones, uma área a que se dedica desde 2018, com foco inicial muito direcionado a setores como a agricultura e a cartografia. Em 2022 ganharam o concurso público internacional lançado pela Marinha Portuguesa para a compra de uma frota de 12 veículos aéreos não tripulados, sendo seis multirotores e seis drones de asa fixa de descolagem vertical.

Um contrato de 600 mil euros e que foi um “game changer” para a empresa, assume o chief operation officer , Pedro Lousã, já que funcionou como uma chancela de qualidade que levou ao aumento da procura pelos produtos da Beyond Vision. “Estamos já a vender em quatro continentes e isso mostra bem a nossa capacidade e potencial, tanto na área civil como na militar”. O recurso à tecnologia 5G nos seus drone é uma das mais-valias, o controlo d todos os dados na cloud, a partir de qualquer parte do mundo, é outra, entre muitas. A autonomia dos veículos aéreos não tripulados da Beyond Vision é outro fator destacado por este responsável.

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