Dez dias depois de Joe Biden abandonar a recandidatura à presidência dos Estados Unidos e passar o testemunho a Kamala Harris, um grupo de 100 investidores de capital de risco criou o movimento “VCs for Kamala.” Incluindo luminários de Silicon Valley como Mark Cuban, Reid Hoffman e Vinod Khosla, o grupo comprometeu-se a votar na candidata democrata, a doar fundos à sua campanha e a recrutar apoios para a sua eleição. .“Acreditamos que instituições fortes e de confiança são uma característica e não um problema, e que a nossa indústria - e quaisquer outras - colapsaria sem elas”, escreveu o grupo na sua carta de compromisso. “É isso que está em causa nesta eleição. Tudo o resto podemos resolver através de diálogo construtivo com líderes e instituições políticas abertas a conversarem connosco.”.A tomada de posição deste grupo de investidores, que entretanto cresceu para 700, foi uma resposta ao que vinha acontecendo em Silicon Valley nos meses anteriores à entrada de Kamala Harris na corrida: vários nomes sonantes tinham afirmado publicamente o seu apoio a Donald Trump e injetado milhões de euros na campanha republicana. Foi o caso de Ben Horowitz, Marc Andreessen, David Sacks, Elon Musk e até os gémeos Winklevoss, cofundadores do Facebook, que doaram 250 mil dólares cada ao comité de ação política que apoia Trump, o America PAC. .“O futuro do nosso negócio, o futuro da nova tecnologia e o futuro da América está literalmente em causa, disse Ben Horowitz, no podcast que mantém com Marc Andreessen, “The Ben & Marc Show.” “Acreditamos que Donald Trump é, na verdade, a escolha certa.” .Em junho, o republicano arrecadou 12 milhões de dólares numa gala de angariação de fundos em São Francisco, coração de Silicon Valley e uma das cidades mais liberais do país. .O que está a acontecer não é uma mudança sísmica na indústria tecnológica, mas denota maior divisão do que em ciclos políticos anteriores. Em 2016, praticamente todos os donativos feitos pelas elites de Silicon Valley na campanha foram para a nomeada democrata, Hillary Clinton, que acabaria por perder para Donald Trump - à exceção de Peter Thiel, magnata que cofundou o PayPal e a Palantir. .Aconteceu o mesmo em 2020, quando Joe Biden derrotou o ex-presidente. Mas o mandato do democrata provocou alterações no posicionamento político de franjas desta indústria. Ainda que a Califórnia seja esmagadoramente democrata e São Francisco seja um bastião de políticas progressistas, e uma das “cidades-santuário” que os conservadores adoram odiar, há magnatas da indústria tecnológica que estão insatisfeitos com a administração Biden. .Os tecno-insatisfeitos.Um dos espinhos na garganta de alguns investidores e empreendedores de Silicon Valley é a agressividade da administração no que toca a criptomoedas. De uma forma geral, os apoiantes de Trump e da abordagem anti-regulatória dos republicanos acreditam que Biden está a dificultar a inovação com impostos, regulamentos e supervisão excessiva. Mas foi desde que a plataforma FTX colapsou, em novembro de 2022, que as coisas se agudizaram. A administração Biden processou a Coinbase e a Binance e começou a defender regulação mais apertada neste espaço. Além disso, envolveu-se em gigantescos processos anti-concentração contra a Apple, Google, Meta e Amazon, e tem continuado a olhar para a big tech a uma luz desfavorável, devido ao enorme poder que esta mão-cheia de empresas acumulou. .É conhecido o empenho de gigantes com a Meta e Alphabet em tentar limitar a abrangência de regulações que ameacem os seus impérios, através de lóbi e conversações com reguladores estaduais e federais. Mas estas empresas também operam num ambiente local que favorece políticas progressistas como o direito ao aborto e beneficiam de políticas defendidas pelos democratas, como a facilitação de vistos para trabalhadores estrangeiros altamente especializados e o investimento em manufatura de componentes eletrónicos no país. Procuram também algo que Donald Trump nunca conseguiu oferecer como presidente: estabilidade..Foi isso que referiu a carta aberta de um grupo de 88 empresários, CEO e ex-líderes corporativos que em setembro anunciou o seu apoio a Kamala Harris. Entre eles estão nomes surpreendentes, como um dos herdeiros do império da Fox News, James Murdoch. E muitos ligados a Silicon Valley, como Michael Lynton, chairman da Snap, Laurene Powell Jobs, presidente do Emerson Collective e viúva de Steve Jobs, Aaron Levie, CEO da Box, Jeremy Stoppelman, CEO da Yelp, Dustin Moskovitz, CEO da Asana, Sean Parker, fundador do Napster, Marissa Mayer, CEO da Sunshine Products e ex-chefe da Yahoo!, Carl Bass, ex-CEO da Autodesk ou Ursula Burns, ex-CEO da Xerox, entre outros. .“Apoiamos a eleição de Kamala Harris como presidente dos Estados Unidos”, lê-se na carta. “A sua eleição é a melhor forma de apoiar a continuidade da força, segurança e fiabilidade da nossa democracia e economia”, continuam. “Com Kamala Harris na Casa Branca, a comunidade empresarial pode estar confiante de que terá uma presidente que quer que as indústrias americanas sejam bem-sucedidas.” .Os signatários frisaram o histórico positivo de Harris como vice-presidente, que disseram ter incentivado a competitividade das empresas norte-americanas no mercado global. “Ela continuará a avançar políticas justas e previsíveis que apoiam as leis, estabilidade e um ambiente de negócios saudável, e dará a cada americano a oportunidade de perseguir o sonho americano.”.Previsibilidade e estabilidade são as grandes vantagens de uma hipotética administração Harris, segundo a perceção dos seus defensores em Silicon Valley - que continua a pender mais para o lado democrata que para o republicano, apesar de tudo. Isso mesmo disse a fundadora do movimento “VCs for Kamala”, Leslie Feinzaig, numa entrevista à Associated Press. .“Compramos risco, certo? E estamos a tentar comprar o tipo certo de risco”, comparou. “É muito difícil para estas empresas que estão a tentar desenvolver produtos e escalá-los operar num ambiente institucional imprevisível.” .Por exemplo, uma das medidas menos populares na plataforma de Donald Trump é a imposição de tarifas de 20% a todos os componentes e bens importados, que aumentam para 60% se vierem da China. Numa análise à proposta, a Tax Foundation concluiu que provocaria um aumento de impostos de 524 mil milhões de dólares, uma redução de 0,8% do PIB e de 0,7% no capital, e uma depressão no mercado laboral de 684 mil empregos..Esse impacto, segundo o relatório, não considera subsequentes escaladas de uma guerra tarifária e potenciais retaliações de países exportadores dos produtos sujeitos a tarifas. Ou seja: o cenário de negócios pode tornar-se completamente imprevisível e flutuar ao sabor de medidas avulsas. É um risco que muitas capitais de risco preferem não correr.