Antes da crise energética e dos preços das matérias-primas (algo que se começou a materializar no final de 2021), o governo português tinha como objetivo reduzir a almofada de liquidez orçamental (depósitos do Estado) do máximo histórico de 17 mil milhões de euros em 2020 (reação ao primeiro ano da grave crise pandémica) para apenas 6,7 mil milhões de euros no final do ano passado.
Em 2022, a barreira protetora de liquidez era para subir até 7,8 mil milhões de euros, mas segundo a nova informação oficial divulgada pela agência da dívida pública (IGCP) aos investidores, o reforço vai ser superior: a meta para os depósitos no final deste ano é, afinal, 8,2 mil milhões de euros.
E este valor poderá ser ainda revisto nos próximos dias, depende do que ficar decidido na nova versão da proposta do Orçamento do Estado de 2022 (OE2022), que será apresentada na semana que agora entra, garantiu o próprio primeiro-ministro, António Costa, no debate sobre o novo programa de governo.
No entanto, a crise inflacionista que já vem de 2021 e depois a eclosão da guerra da Rússia contra a Ucrânia, em finai de fevereiro, levaram as Finanças a afinar os seus planos: tudo aponta para uma maior prudência orçamental, basicamente, materializada num reforço dos depósitos do Estado.
O custo de ser prudente
Esta prudência tem um preço. Se, por um lado, oferece segurança de liquidez e alguma autonomia financeira caso suceda algum incidente nos mercados de dívida, por outro, os depósitos são classificados como dívida.
Ou seja, quanto mais dinheiro estiver guardado para esse efeito almofada, mais difícil é reduzir o endividamento, um indicador que penaliza muito Portugal nas comparações europeias e internacionais.
A República tem umas das maiores dívidas do mundo desenvolvido quando medida em percentagem do produto interno bruto (PIB), estando por isso muito mais exposta a subidas das taxas de juro, como agora se perfila na nova era programática do Banco Central Europeu (BCE).
Assim, por causa deste ambiente de crise crescente, em vez dos 6,7 mil milhões de euros em depósitos que estavam previstos no Programa de Estabilidade de 2021 (PE), o novo PE 2022 revela que o tamanho da almofada afinal foi reforçado até 8,8 mil milhões de euros, revela a atualização do IGCP, agência tutelada pelo ministro das Finanças, Fernando Medina.
O Estado não é o setor público todo, é a parte que está sob o comando direto dos ministros e do governo. Além do Estado, existem as empresas públicas e os institutos, as autarquias e as regiões.
Dito isto, a previsão das Finanças (via IGCP) é reduzir substancialmente o défice do Estado de 9,6 mil milhões em 2021 para 6,8 milhões de euros em 2022.
No entanto, face à anterior projeção, não há alteração de relevo nas necessidades líquidas de financiamento para 2022 uma vez que o governo revê em alta a rubrica das aquisições líquidas de ativos financeiros, o que pode ser explicado por despesas com apoios a empresas públicas. A meta para o final deste ano era apenas 1,7 mil milhões de euros há um ano; agora já vai em mais do dobro, cerca de 3,5 mil milhões de euros.
Por exemplo, no Programa de Estabilidade apresentado pelo ex-ministro das Finanças, João Leão, poucos dias antes deste perder a pasta, o governo previa mais 600 milhões de euros em "apoio extraordinário à TAP", algo que já estava previsto no plano de recuperação da transportadora na sequência da pandemia.
Como foi
Como referido, o nível de depósitos e a sua gestão são indicadores que revelam o grau de prudência e de stress a que as contas públicas podem estar sujeitas.
Quando Portugal entrou em bancarrota em 2010/2011, a troika (equipa composta por Comissão Europeia, BCE e FMI), que comandou o programa de austeridade implementado pelo governo do PSD-CDS, exigiu que Portugal (que ficara sem acesso aos mercados de dívida) começasse a acumular uma reserva de liquidez substancial, de modo a ter autonomia financeira e força dissuasora quando começasse a regressar aos mercados.
O histórico do IGCP mostra que a almofada de segurança orçamental (só Estado) chegou a superar os 15 mil milhões de euros em 2012 e 2013, os anos mais duros do ajustamento, dos cortes diretos em pensões e salários e do "enorme aumento de impostos" de Vítor Gaspar.
Depois foi esvaziando, com algumas oscilações, tendo atingindo um dos valores mais baixos desde 2010 em 2019. Nas vésperas da pandemia covid-19, a almofada de liquidez estatal estava avaliada em 6,8 mil milhões de euros.
Em março de 2020 é declarada a pandemia covid-19 e o mundo entra em confinamento, o que provocou uma crise económica muito aguda, ainda que parte dela transitória.
Em reação a esses tempos, as Finanças decidiram aproveitar ainda mais as taxas de juro mínimas proporcionadas pelas medidas do BCE e acumular largas quantidades de dinheiro nos cofres. "Cofres cheios", como dizia a última ministra das Finanças do PSD, Maria Luís Albuquerque.
Assim, no final de 2020, a referida almofada atingiu uma dimensão histórica: 17 mil milhões de euros.
Menos almofada, menos dívida
O seu esvaziamento para quase metade (8,8 mil milhões de euros) acabou por ser decisivo para ajudar a reduzir a dívida total. O rácio da dívida pública atingiu um máximo histórico de 135,2% do PIB (produto interno bruto) em 2020 e depois caiu para 127,4% no ano passado.
Para este ano, as Finanças projetam uma nova descida acentuada, para 120,8% do PIB, acompanhada por um corte significativo no défice, de 2,8% do PIB, em 2021, para 1,9%, em 2022.
A agência da dívida portuguesa explica que "a sustentabilidade e o custo aceitável da dívida pública são reforçadas mediante uma política orçamental responsável (excedentes primários sustentados e custos de juros mais baixos) e uma gestão ativa da dívida".
Esta gestão passa por obter "um perfil de pagamentos [amortizações] mais suave, uma maturidade média mais longa, uma base de investidores mais ampla e uma gestão prudente da tesouraria", diz o IGCP. Tesouraria são os depósitos.
Em dezembro do ano passado, o BCE anunciou que iria começar a descontinuar programa de compra de dívida, o que faz encarecer as taxas de juros. Há inclusive quem no BCE queiram mesmo que as próprias taxas de juro diretoras, de referência, comecem a subir também.
Portanto, o recurso a almofadas de liquidez, além de atrasar a desejada descida da dívida, também atrasa a redução do défice uma vez que os novos depósitos podem vir com maior custo associado. Mais juros. E juros são despesas que vão ao défice.