Ainda não há clareza sobre o novo regime de teletrabalho, em vigor desde o início deste ano, mas repetem-se exemplos de empresas que avançam para a compensação dos acréscimos de despesas para quem trabalha em casa com propostas de um valor fixo e, ao mesmo tempo, de retirada de subsídios de refeição e outros, como subsídio de transporte. Nalguns casos, com possível perda de várias dezenas de euros na folha de vencimento dos trabalhadores.
A situação está a ser denunciada por sindicatos, e ainda nesta última semana um grupo de organizações que representam os trabalhadores da RTP contestou uma proposta de acordos individuais de teletrabalho neste sentido. "A empresa está a propor reduzir o subsídio de refeição para seis euros, retirar o subsídio de transporte e dar um custo fixo de 15 euros a todas as pessoas que estão em teletrabalho", explica Clarisse Santos, secretária-geral do Sindicato dos Meios Audiovisuais (SMAV).
A RTP pretende reduzir o subsídio de refeição de 7,25 para seis euros para quem trabalha em casa. Também a perda do subsídio de transporte, previsto no acordo de empresa, é um dos pontos criticados. Entre os salários mais baixos da RTP, o subsídio é de 45,86 euros pagos 11 meses por ano, sendo de 30,57 euros e de 15,29 euros já nos níveis remuneratórios mais elevados, igualmente pagos 11 meses por ano.
Com a proposta apresentada, os trabalhadores com salários mais baixos, até cerca de 1300 euros, perderiam por mês 58,38 euros, nos cálculos do DN/Dinheiro Vivo a partir dos termos do acordo de empresa em vigor. As perdas serão menores nos salários mais acima, mas para o SMAV, não há dúvidas: vai haver menos dinheiro ao fim do mês e o subsídio "é remuneração". "Foi considerado remuneração porque está indexado ao nível remuneratório do trabalhador. O parecer jurídico que temos de vários advogados de sindicatos é de que nem o subsídio de refeição pode ser reduzido, nem o subsídio de transporte pode ser eliminado", afirma Clarisse Santos.
Mas, este é precisamente um dos pontos do novo regime de teletrabalho sobre o qual há interpretações divergentes. Se a legislação estabeleceu igualdade de direitos e deveres entre trabalhadores que estão nas instalações do empregador e os que não o estão, acabou por não tornar expresso se as funções remotas preservavam o subsídio de refeição ou não, por exemplo. E há quem defenda que deve deixar de ser pago.
"Não existindo em nenhuma norma do Código do Trabalho a imperatividade do pagamento do subsídio de refeição, o subsídio de refeição não é considerado retribuição. Seria pouco ortodoxo que nesta nova lei do teletrabalho o subsídio de refeição tivesse de ser pago quando para todas as outras formas de laboração não é imperativo que seja pago", defende Pedro da Quitéria Faria, especialista em Direito do Trabalho da sociedade de advogados Antas da Cunha Ecija.
Já antes da entrada em vigor da nova legislação, logo em abril de 2020 e com a obrigatoriedade do teletrabalho em vigor, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e a Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho defenderam o oposto. "Os trabalhadores em regime de teletrabalho mantêm os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores", prescreveram nos respetivos sites, em resposta à questão sobre uma eventual perda de subsídio de refeição.
Agora, os organismos sob tutela do Ministério do Trabalho ainda não se pronunciaram sobre a validade de acordos de teletrabalho que eliminem esta componente da remuneração habitual dos trabalhadores. O DN/Dinheiro Vivo questionou a ACT na última semana sobre esta matéria, não tendo tido resposta até esta publicação.
Mas a questão foi também já colocada no final do verão passado pelo Sindicato dos Trabalhadores de Call Centers (STCC), igualmente sem réplica até aqui. Desta vez, a respeito de contratos celebrados antes da entrada em vigor da nova lei pela empresa Citel, "em que todos os trabalhadores contratados já com a pandemia têm tido contrato especificamente de teletrabalho, sem subsídio de alimentação e com um valor fixo de pagamento para as despesas em teletrabalho de 15 euros", explica o dirigente José Abrantes.
"Colocámos essa questão à ACT. Estamos à espera. Estamos a falar de trabalhadores com as mesmas funções, na mesma empresa, em que uns recebem subsídio de alimentação e outros não. Os 15 euros não compensam, nem pensar", diz. Nestes casos, estará em causa uma perda de 117 euros face aos trabalhadores que já se encontravam em funções antes.
Muitas destas situações têm chegado à UGT, que já lançou um alerta aos sindicatos sob a sua alçada para que estejam atentos aos contratos individuais que estão a ser apresentados a quem fica em teletrabalho, e chamem as empresas à negociação coletiva dos termos a estabelecer.
Sérgio Monte, secretário-geral adjunto da UGT, chama a atenção para "uma situação que muita gente não conhece": "Esses subsídios foram criados, em grande parte, para dar salário ao trabalhador porque muitas vezes não era possível através da negociação coletiva pedir aumentos maiores. Então, o que é que se fazia? Criavam-se subsídios. É por isso que muitas regulamentações coletivas têm muitos subsídios consignados. Servem para colmatar a falta de se poder aumentar [salário] na tabela".
Mas, a perda de subsídios não é a única denúncia dos sindicatos. Outra queixa recente é a de empresas que, semanas antes da entrada em vigor do novo regime, propuseram acordos de teletrabalho que "referiam que todas as despesas inerentes ficavam a cargo do segundo outorgante, ou seja, o trabalhador", cita José Abrantes, que recebeu várias exposições de trabalhadores.
"Tenho seríssimas dúvidas sobre a licitude do clausulado. Ainda para mais quando estamos no âmbito de uma relação laboral que, de alguma forma, é sempre uma relação desequilibrada e em que o acordo pode não ser celebrado de forma livre", refere Quitéria Faria. A ACT ainda não se pronunciou sobre estes casos, tendo também sido colocada a questão pelo DN/Dinheiro Vivo.
Os casos denunciados foram, novamente, Citel, e também Manpower, Teleperformance e alguns bancos, com os trabalhadores a serem aconselhados a não assinar as minutas. Afinal, a legislação passou a impor o pagamento de despesas a mais, como de energia e comunicações, dependendo da iniciativa dos trabalhadores apresentarem faturas que o comprovem. Muitos estarão a tentar fazê-lo, segundo o STCC, mas ainda sem resultados. Muitas empresas também estarão a ponderar avançar com um subsídio fixo e os 15 euros parecem ser a referência. "Está a ser discutido noutros setores", diz José Abrantes.