"A Europa tem agora uma oportunidade de desviar talento tecnológico dos EUA para cá”
Vitor Gordo / D.R.

"A Europa tem agora uma oportunidade de desviar talento tecnológico dos EUA para cá”

O Diretor-Geral da SAP Portugal abriu as portas da empresa ao DN e esteve à conversa sobre os desafios do negócio, da cibersegurança e da Inteligência Artificial. E deixou uma nota de confiança: a Europa não está a ficar para trás tecnologicamente.
Publicado a

Qual é a abordagem da SAP às várias áreas em que desenvolve negócio?

SAP quer dizer “Sistemas, Aplicações e Produtos”. Felizmente, traduz do alemão para português com as mesmas palavras. Criou no seu início um standard de gestão informática dos processos das empresas, mas desde muito cedo a SAP começou a especializar-se em 25 setores de negócio, em 25 áreas que nós chamamos indústrias. Setores muito específicos, criando um suporte tecnológico e informático para as várias áreas. Temos uma solução muito específica para energia, mesmo dentro de energia temos uma para Oil&Gas, para as renováveis temos outras. A SAP pauta por ter não só um sistema robusto de gestão do negócio, mas, depois, vai muito ao detalhe nos processos que são específicos de cada indústria. E isto vai desde energia até ao retalho, com optimizações de logística, de gestão de armazéns, de gestão de sistemas de docking, de gestão de transportes, na área de hospitality, com gestão de hotéis e de cruzeiros. A abrangência vai em todos estes setores, incluindo Saúde...

Também na área da Defesa...

Sim, na Defesa também. Várias forças de defesa, nomeadamente o nosso Ministério da Defesa Nacional, nos seus vários ramos, usa as nossas aplicações. Na Alemanha também. Nos Estados Unidos também. Em Israel também. Enfim, vários países.

É tudo uma enorme operação de logística, de gestão de recursos e equipamento. 

Exatamente. Há toda uma parte logística, mas depois há também a área de manutenção, gestão de ativos. Pautamos por fazer esta cobertura muito específica dos processos de cada setor de actividade. E eu diria que grande parte do sucesso da SAP tem vindo daí. Porque conseguimos, de certa forma, ajudar as organizações em todas estas áreas económicas a não terem que reinventar a roda. Ou seja, os processos de cada uma das indústrias nós cobrimo-los e depois cada empresa há-de ter as suas diferenciações. O seu core business, em que é melhor e tem um fator competitivo face às outras empresas do seu sector de actividade. 

E mais recentemente, qual tem sido o foco?

Nos dias de hoje, o que a SAP tem feito nestes últimos anos tem sido transformar um modelo de negócio que era baseado no licenciamento perpétuo do software. Portanto, as empresas adquiriam o software como com um ativo, licenciava-o e tinha uma licença eterna. E depois tínhamos contratos de manutenção para fazer correções e atualizações. Temos vários parceiros que implementavam essas soluções e nos últimos anos este nosso negócio alterou-se completamente.

Vitor Gordo / D.R.

Para um modelo de subscrição. 

Para a subscrição, sim. Com o modelo na cloud, onde nós, além de fornecermos só o software em si, passámos a fornecer também a infraestrutura e os serviços para a manutenção dessa infraestrutura e software. Portanto, até com os temas que hoje em dia são críticos, como a cibersegurança, o que nós fazemos é tomar o ónus e a responsabilidade de gerir a infraestrutura, as aplicações e os serviços. E, portanto, quando houve agora o apagão, os nossos clientes que já têm os seus sistemas na cloud, quando voltou a eletricidade, foi simplesmente ligar outra vez o PC e fazer login. E estão a funcionar, porque o sistema está todo na cloud, enquanto que quem tem os sistemas localmente teve de estar a reiniciar até garantir que estava tudo coerente.

Como é que as empresas portuguesas reagiram a essa realidade? Ainda estão muito presas à ideia de que não podem abdicar de ter servidores próprios? 

A experiência da SAP é mais de business-to-business, de corporate, mas posso dizer que nos últimos dois anos as coisas mudaram drasticamente.

Porquê nos últimos dois? Qual é o catalisador dessa mudança nos últimos dois anos, a pandemia?

Não. Um deles é o tema da cibersegurança. As organizações, por si, já não têm capacidade, nem recursos para fazer frente a estas ordens de ataque personalizadas e muitas vezes subsidiadas.

E vocês têm?

Nós temos. Porquê? Porque agarramos nos sistemas das empresas e pomos em hiper-scalers. Ou seja, em fornecedores globais de tecnologia que nós gerimos, em que podemos ter, digamos, a garantia de toda a personalização e a especificidade das empresas, mas ao mesmo tempo, com a economia de escala que existe nesses data centers, nós conseguimos garantir que as últimas tecnologias de chips, as equipas de friendly hackers  – pessoas que testam as vulnerabilidades do sistema continuamente – estão disponíveis. E sim garantimos todo o tema da cibersegurança de uma forma muito mais imediata e em tempo real do que seria possível a uma organização, per si, tentar manter com fornecedores. Portanto, a resposta é sim, nós conseguimos fazer isso. E não há, até ao dia de hoje, felizmente, nenhuma notícia de que algum dos nossos sistemas geridos pela SAP tivesse tido um ataque. Não o estou a dizer como um desafio, mas é uma realidade até aos dias de hoje. Felizmente, tem-se conseguido manter a integridade desses sistemas.

Eu acho que a Europa não está a ficar para trás. (...) Vejo empresas, quer em Portugal quer na Europa, a fazer projetos de transformação, a serem competitivas, a exportarem

Qual é a dimensão típicas das empresas em Portugal que recorrem aos vossos serviços? Uma pequena empresa consegue fazê-lo?

Sim, diria que sim. 70% dos clientes que nós temos em Portugal são PME. É o nosso tecido empresarial em Portugal.

À escala da Alemanha seriam microempresas, mas aqui são PME. 

Isso mesmo. E já há vários anos que que a maior parte dos nossos clientes são PME. E nós temos vindo a ganhar muitos clientes dessa dimensão nos últimos anos. Empresas como uma MAP Engenharia, uma Mendes Gonçalves, que também já tem alguma dimensão para o nosso país, certamente, mas que inicialmente, há 15 anos, não eram o os nossos principais clientes. Neste momento, a maior parte dos clientes em Portugal são pequenas e médias empresas. Claro que depois, em termos de volume de negócio, os grandes clientes tem uma relevância maior, mas a maior parte são PME.

São vocês que abordam as empresas ou são elas que vos procuram?

Abordamo-las através dos nossos parceiros, porque nós não temos capilaridade suficiente para ir a todo o mercado. E os nossos parceiros são uma rede de empresas internacionais, como por exemplo uma Accenture, uma Deloitte, EY, PwC, uma KPMG. Mas também parceiros nacionais, como por exemplo uma Inetum, uma Balentic, uma AMT, uma Brighton. Que referenciam e revendem as nossas soluções. Portanto, temos um grande espectro de parceiros de todas as dimensões e é o que nos permite ter essa capilaridade.

Vitor Gordo / D.R.

Como é que tem sido a evolução do negócio em termos de volume?

Nós crescemos, de 2023 para 2024, à volta de 10% no total de volume de negócio. Normalmente, um crescimento a dois dígitos é um bom crescimento. Mas o que temos medido com muito mais atenção ultimamente tem sido esta percentagem de crescimento dos novos bookings, que no fundo são novos contratos de subscrição e de cloud. E aí, em 2024 crescemos 79% face a 2023. Exatamente por causa desta transformação de muitos clientes para cloud  e de novos clientes que surgem logo com este modelo. É aí que nós estamos muito focados em ter certeza que que toda a gente vai para esta área da cloud. E leva-nos ao tema da Inteligência Artificial.

Em que medida?

Porque estes modelos de Inteligência Artificial têm necessidades específicas em termos de infraestrutura, de hardware. E se fossemos fazer isto num modelo tradicional, com os sistemas na casa do cliente, nós teríamos que andar a pedir-lhe para aumentar a memória, para pôr mais capacidade de processamento. Portanto, era difícil.

Provavelmente teria de fazer um pedido desses a cada semana...

E se o cliente usasse mais numa semana do que noutra? Depois podia estar umas com capacidade a mais e noutras a menos. Enfim, este balanceamento e esta escala nós conseguimos, nos datacenters, entregá-lo como um serviço. Se nós tivermos os clientes todos nesta versão de cloud, conseguimos fornecer-lhes os modelos de Inteligência Artificial que, neste momento, são a nossa principal prioridade. Portanto, nós temos em todas estas 25 indústrias cenários específicos de inteligência artificial que permitem não só automatizar – isso é algo que nós já fazíamos há bastante tempo, fazendo, por exemplo, modelos preditivos para a manutenção de ativos e coisas desse género – mas hoje em dia estamos a falar também de Inteligência Artificial generativa que permite gerar inclusivamente novos processos, novos conteúdos. 

Uma empresa que queira começar em Portugal e que queira começar a exportar, que até queira começar pelos mercados internacionais, tem muitas barreiras iniciais

Do vosso ponto de vista, a Europa está ou não a ficar para trás no que toca à tecnologia, face aos EUA e à China? Preocupa-vos?

Eu acho que a Europa não está a ficar para trás. A Europa trabalhou e a SAP acabou por ultrapassar a maior empresa europeia em termos de capitalização bolsista, por via do tema da Inteligência Artificial e as suas potencialidades. E o que é que nós fizemos? Eu dou o próprio exemplo da SAP. A SAP não reinventou os grandes hiper-scalers, como a Amazon Web Services, a Google Cloud Platform ou a Microsoft Azzure. Não. Nós fizemos parcerias com eles para utilizar essa infraestrutura para servir os nossos clientes, tal como fizemos com o Alibaba. Portanto, nós fizemos parcerias com vários fornecedores de tecnologia que dão essa infraestrutura. Mas não existe um grande player  na área de hiper-scalers na Europa. Verdade. Porque até agora o contexto tem sido uma colaboração com outras regiões do mundo.

E é preciso haver um grande hiper-scaler  na Europa? A vossa experiência diz que não.

Até agora, não tem sido o caso. Tem prevalecido, eu diria, a confiança entre estas várias instituições para continuar a fazer negócio em conjunto e cumprir.

E administrações – quer na Europa, com a Comissão Europeia, quer nos Estados Unidos – que têm permitido isso. Mas não sabemos quanto tempo é que isso pode durar.

Claro. Ninguém sabe o que é que poderá acontecer. Há uma preocupação maior em garantir determinados serviços e infraestruturas. Mas quer dizer, essa dependência das grandes tecnológicas americanas existe também, como existe connosco, no mercado de consumo. Basta olharmos para os nossos próprios smartphones  e para toda a infraestrutura. Agora não tem sido um problema. Eu acho que se está a começar a pensar em, eventualmente, ter outras garantias em termos de utilização destas infraestruturas e serviços, mas eu diria que para o progresso da Europa não tem sido um problema. Há até uma oportunidade, que tem a ver com com aquilo que está a acontecer em termos de investigação e na Academia nos Estados Unidos. Neste momento, eles estão a fechar muitas iniciativas de investimento na investigação. Estão a fechar muitos programas que tinham para atrair talento a nível global. E essa pode ser uma oportunidade para a Europa de utilizar essas pessoas e de motivá-las a vir para países europeus. As coisas estão a mudar rapidamente.

Está a falar de disputar-lhes o talento ou, pelo menos, a capacidade de atrair talento.

Sim. Eu acho que isso pode ser algo que venha a ter mais relevância. Agora, concretamente, em relação à pergunta se tem sido uma preocupação ou se tem havido um atraso que prejudique a Europa em termos tecnológicos. Eu acho que até agora não. E eu vejo as empresas, quer em Portugal quer na Europa, a continuarem a fazer projetos de transformação, a serem competitivas, a exportarem. Mesmo em Portugal temos várias empresas de sucesso a fazer a mais produção para o mercado internacional e que continuam a operar.

Vítor Gordo / D.R.

Qual é o principal obstáculo que existe em Portugal  ao desenvolvimento das empresas no setor em que vocês operam?

Eu acho que poderia haver mais agilidade naquilo que é a legislação. Poderia haver mais agilidade nos sistemas de licenciamento, nos incentivos – não tem de ser necessariamente incentivos como subsídios e financiamento – mas sim incentivos de simplificação. Uma empresa que queira começar e que queira começar a exportar, que até queira começar pelos mercados internacionais, tem muitas barreiras iniciais.

Barreiras legislativas ou burocracia? 

A falta de coordenação entre as instituições. Há uma dificuldade inicial. Porque o mindset  para começar, olhar para o mercado global e o talento para o fazer isso existe. Existe talento suficiente no nosso país para o fazer, mas existe também uma burocracia inicial que não é fácil e que não nos põe, propriamente, numa posição competitiva em relação a outros países.

Diário de Notícias
www.dn.pt