
Esta quinta-feira, em Ílhavo, Aveiro, o Parque Ciência e Inovação recebeu um evento marcante para o setor da comunicação social em Portugal. A conferência "Convergência entre Media e Tecnologia", promovida pela Associação Portuguesa de Imprensa (API), em colaboração com o PCI – Creative Science Park e a Universidade de Aveiro, reuniu um conjunto notável de especialistas, jornalistas, académicos e decisores políticos. O objetivo principal foi explorar os desafios e as oportunidades que a transformação digital traz para os meios de comunicação social, num contexto onde a tecnologia está cada vez mais integrada na produção e distribuição de notícias.
Formação e adaptação: o papel da capacitação
Um dos principais temas discutidos foi a necessidade de formação e capacitação para enfrentar a resistência à adoção de novas tecnologias, como a IA. Durante o debate, os especialistas destacaram que, apesar do potencial transformador da IA, muitos profissionais da área dos media ainda enfrentam dificuldades em abraçar as ferramentas digitais. Entre os desafios apontados está a falta de tempo para formação e a carência de conhecimento sobre as possibilidades oferecidas por estas tecnologias. Neste sentido, foi sublinhada a importância de programas de formação específicos e adaptados às necessidades dos jornalistas e outros profissionais do setor.
A resistência à mudança também foi abordada como um dos principais entraves ao progresso. Miguel Crespo, diretor do CENJOR, e Luís Simões, presidente Sindicato dos Jornalistas, apontaram que muitos profissionais ainda receiam que as novas tecnologias possam desvalorizar ou mesmo substituir o trabalho humano. Contudo, o consenso entre os participantes foi de que a tecnologia não deve ser vista como uma ameaça, mas sim como uma aliada na melhoria da eficiência e da qualidade do jornalismo.
Credibilidade e literacia mediática: uma resposta à desinformação
Outro ponto central da conferência foi a crise de credibilidade que os meios de comunicação enfrentam, exacerbada pela proliferação de desinformação nas plataformas digitais. Para os participantes, combater este fenómeno exige um compromisso renovado com o rigor jornalístico e a promoção de campanhas de literacia mediática que ensinem os cidadãos a identificar informação fidedigna. Paulo Ribeiro, da Associação de Imprensa de Inspiração Cristã (AIC), afirmou mesmo que “a mentira só se combate com a verdade”, ao que Miguel Crespo apontou que alguns media contribuíram para a erosão da credibilidade e que, também, se perdeu muito a noção do que é ou não jornalismo. Para o diretor do CENJOR isto só se combate com campanhas de informação pública que expliquem o que é o jornalismo e o que este significa para uma sociedade democrática. Na prática apostar na literacia e em explicar o que são os media em geral. Porque para quem não está atento é muito fácil ser enganado. E “é importante que o setor se esforce por diferenciar o seu conteúdo”.
A credibilidade foi descrita como um dos ativos mais valiosos para os meios de comunicação, especialmente num ambiente onde a concorrência é feroz e a atenção do público está dispersa entre múltiplos canais. O papel do jornalismo como um serviço público também foi reforçado, com ênfase na necessidade de criar conteúdos de alta qualidade que se destaquem da abundância de informações online. Este foi um tema que dominou o evento, com vários intervenientes a referirem ser a forma de diferenciar a comunicação social: o disponibilizar informação de qualidade e relevante para as audiências.
Inteligência Artificial: promessas e dilemas éticos
A IA foi um dos temas mais debatidos durante o evento. Os participantes reconheceram o potencial desta tecnologia para transformar a produção de notícias e melhorar a interação com os leitores. Entre os exemplos discutidos estão a utilização de IA para personalizar conteúdos, automatizar tarefas repetitivas e analisar grandes volumes de dados.
No entanto, a integração da IA também traz dilemas éticos que não podem ser ignorados. Questões como a transparência no uso de IA, o risco de uniformização dos conteúdos e a possibilidade de manipulação de informações foram levantadas. Luís Simões colocou mesmo a pergunta: se utilizo a IA para fazer um texto devo assinar esse artigo? Isso leva à necessidade de garantir que a tecnologia seja utilizada de forma responsável e alinhada com os princípios deontológicos do jornalismo. A questão é que as pessoas ainda estão a aprender a “mexer” com estas ferramentas. O que significa, por um lado, que não há pessoas suficientes para dar formação e que ainda há muitas incógnitas. Muitas perguntas sem resposta.
A isto Cláudia Maia, da Associação Portuguesa de Imprensa, lembra que, na base de dados da ERC apenas um terço dos media inscritos são digitais. Outro terço são jornais digitais e os restantes não têm qualquer tipo de digital. A verdade é que “não há investimento em tecnologia e na forma de trabalhar os conteúdos”. A executiva acrescenta ainda que este é um desafio para toda a imprensa nacional e que a tecnologia trouxe a democratização da informação, assim como o da produção. Com todos os riscos que isso acarreta. Porque hoje “qualquer pessoa pode produzir informação. Que muitas vezes não é escrutinada”. Com uma agravante adicional. “As novas gerações não sabem distinguir aquilo que é rigoroso daquilo que não é verificado e o que não é verificável”. Na verdade, “há muita informação que não é fidedigna2. E isso “exige muito trabalho de literacia”.
Um dos problemas, referiu Salvador Bourbon Ribeiro, da Bauer Media, reside no facto de, em termos de consumo digital (sobretudo áudio) estamos muito abaixo de outros mercados. Já no que concerne às redes sociais, a opinião de Eurico Jardim, diretor Técnico do DN Madeira, é que estas não são o problema. O problema reside na informação (ou mais precisamente no tipo) que é partilhada e no uso que se faz dela. A isto Cláudia Maia acrescentou que “os jornalistas não são donos da verdade”. Mas, acrescentou, têm a missão de transmitir a verdade e só por isso são diferenciadores de todos os outros. “Nem todos têm de ser jornalistas, mas tem de haver um mínimo de curadoria naquilo que é publicado”, afirmou.
Face a isto, e dado que lida com estas questões todos os dias, Bernardo Correia, country manager da Google para Portugal, refere que ninguém diz que não é preciso regular tecnologias como a inteligência artificial. Para o executivo tudo se prende com encontrar um equilíbrio. Porque qualquer tecnologia pode ser utilizada para múltiplos fins. “A escolha é nossa”. E cabe à Europa definir que enquadramento quer ter. “Um que nos permita inovar e ser competitivos a nível internacional”.
Sustentabilidade e modelos de negócio
A transição digital apresenta desafios significativos no que diz respeito à sustentabilidade económica dos meios de comunicação. Apesar das oportunidades oferecidas por novas formas de monetização, como subscrições digitais e publicidade direcionada, os participantes alertaram para as dificuldades de implementar modelos de negócio sustentáveis num mercado em constante evolução.
Paulo Ribeiro foi um dos mais vocais sobre o tema, alertando que muitos meios de comunicação, sobretudo os regionais, enfrentam limitações de financiamento que dificultam a inovação e a adoção de tecnologias emergentes. Neste contexto, destacou-se a importância de um maior apoio do Estado, através de incentivos fiscais, programas de financiamento e regulações que promovam a competitividade do setor.
Colaboração e políticas públicas
A colaboração entre diferentes entidades foi apontada como um elemento essencial para enfrentar os desafios tecnológicos e financeiros. Desde parcerias entre empresas de media e universidades até à colaboração com startups tecnológicas, foram discutidas diversas formas de criar sinergias que potenciem a inovação.
O papel do Estado também foi destacado como crucial. Políticas públicas que incentivem o investimento nos media e que promovam a inclusão digital foram apontadas como prioridades. Já no que concerne à regulação, por um lado foi referido que a anterior Comissão Europeia esteve bastante ativa no que concerne à publicação de documentos que abarcassem o digital. Por outro lado, e como lembrou José Guimarães, da EMMA/EMPA, hoje é rara a diretiva que não tenha impacto na imprensa. Face a isto a opinião de Filipe Batista, da REPER, é a de que “já temos regulação suficiente”. Oexecutivo aponta que houve uma inversão “quase pornográfica” na forma como as pessoas consomem informação.
A grande questão, lembrou José Guimarães, é que apesar de se falar muito de transição digital, a verdade é que é o papel que ainda paga as contas. “A imprensa em papel, a sua importância, não pode ser esquecida”, afirmou, acrescentando que, no que concerne a leis como os direitos de autor, mas também na IA, é importante a aplicação, “sem medos” das regras já existentes.
A Europa está a ir por um caminho diferente, com mais restrições (aparentes). Questionado sobre se isso trava a inovação a resposta de Filipe Batista é a de que o caminho escolhido não trava a inovação. Mas cria responsabilidade. José Guimarães vai mais longe e afirma que o que penalizou os media foi terem despejado os conteúdos no digital sem terem um modelo de negócio associado.
Visão para o futuro
A conferência terminou com um apelo à necessidade de equilibro entre inovação e regulação. Os avanços tecnológicos foram descritos como uma oportunidade para democratizar e expandir o alcance dos media, mas exigem uma abordagem responsável que coloque a ética e a qualidade em primeiro lugar.
Iniciativas como o AMCC Digital Media Hub foram destacadas como exemplos práticos de como impulsionar a transformação digital nos media portugueses. Este projeto visa criar hubs digitais que promovam a inovação e a colaboração, abrindo novas perspetivas para o setor.
No final, ficou claro que o futuro dos meios de comunicação em Portugal depende da capacidade de adaptação às novas realidades tecnológicas, da colaboração entre os diferentes agentes do setor e da valorização da credibilidade e da qualidade jornalística. Apenas assim será possível garantir um futuro sustentável e relevante para os media num mundo cada vez mais digital e interconectado.