De uma forma simplista, aos preços a que são transacionados os Bens e Serviços (B&S) nos mercados internacionais, as exportações correspondem a excessos de oferta e as importações a excessos de procura. No essencial, os preços dos B&S dependem dos fatores físicos que incorporam e dos preços desses fatores; em particular, dependem da quantidade de horas de trabalho necessárias e do preço do trabalho (salários). Depois, para transações internacionais, o preço dos B&S devem ser designados numa moeda comum, pelo que dependem também da taxa de câmbio.
No caso português, como cerca de 80% do comércio internacional é realizado com países da zona Euro, a taxa de câmbio tornou-se irrelevante na comparação de preços à escala internacional. A desvalorização da moeda, outrora possível e habitual, para diminuir os preços dos B&S produzidos internamente nos mercados internacionais e, assim, ganhar competitividade, deixou de ser possível. Além dos parceiros possuírem a mesma moeda, a política cambial é da responsabilidade do Banco Central Europeu. Neste contexto, o país apenas ganha competitividade internacional - tem excesso de produção e exporta - se, em particular,
· a quantidade de horas de trabalho necessárias para produzir os B&S diminuir; ou seja, se melhorar a produtividade;
· e/ou se o custo da mão-de-obra (salário) diminuir ou aumentar menos que nos países parceiros comerciais.
Quando as exportações são consecutivamente inferiores às importações, o país vive acima das suas possibilidades, pelo que vai acumulando desequilíbrios - interpretem-se estes desequilíbrios como uma espécie de "lixo". Tradicionalmente, em Portugal, esses desequilíbrios vão sendo escondidos, "varrendo-os para baixo do tapete", até que a acumulação por "baixo do tapete" é tão intensa que, na sequência de uma crise internacional; i.e., de uma "ventania", o "lixo" fica todo a descoberto. Foi assim em 1977 e em 1983 na sequência dos denominados choques de alta do petróleo dos anos 70. Voltou a ser assim em 2011 na sequência da crise financeira de 2008.
Na posse do instrumento taxa de câmbio, em 1977 e 1983, a competitividade da economia portuguesa foi reposta com a desvalorização da moeda. Sem instrumento taxa de câmbio e sem capacidade do país para melhorar a produtividade, em 2011, a competitividade da economia portuguesa foi restituída com a diminuição de salários.
De acordo com a Pordata, as exportações suplantaram as importações entre 2012 e 2019, retomando, posteriormente, o indesejado contexto de exportações bastante inferiores às importações. Ou seja, retornámos à trajetória de acumulação de desequilíbrios ("lixo") acentuados, com o país a viver de novo acima das possibilidades.
Vem tudo isto a propósito das declarações do Primeiro-Ministro sobre a promessa de aumentar o salário médio em 20% nos próximos 4 anos. Como não é seu hábito ser muito rigoroso, nada disse sobre se esse aumento é em termos nominais (contando com a taxa de inflação) ou reais (descontando a taxa de inflação). No entanto, deduz-se que se referia a um crescimento real de 20%, pois só assim será possível passar os salários de 45% do PIB para 48% em 2026, como também foi referido.
O que significa realmente esta promessa? Temos que distinguir entre duas hipóteses.
Primeira hipótese - O Primeiro-Ministro vai mesmo forçar os salários a serem 48% do PIB em 2026 (pouco provável).
Significaria que a consequente degradação expectável da balança comercial arrastaria rapidamente o país para a necessidade de nova ajuda externa.
A taxa de inflação este ano será previsivelmente de 7% e suponha-se que diminuirá todos os anos um ponto percentual até atingir 3% em 2026. Neste caso, para que o salário real pudesse aumentar 20% até 2026, teria de crescer todos os anos 3.72% em termos reais, e entre 10.72% e 6.72% em termos nominais.
Admitindo que a taxa de inflação será semelhante no conjunto da zona Euro; i.e., nos principais parceiros comerciais, sem capacidade para gerar ganhos imediatos de produtividade, o aumento do salário médio seria dramático para a competitividade da economia portuguesa e, consequentemente, para a já insignificante taxa de crescimento da economia.
Significaria, enfim, que se aceleraria a tendência para que o tamanho do "bolo", face ao das outras economias europeias, ficasse radicalmente mais pequeno e o país continuasse pobre, estagnado, injusto, de emigrantes jovens qualificados, de imigrantes desqualificados, e desigual social e territorialmente.
Segunda hipótese - O que o Primeiro-Ministro diz não é para acreditar (muito provável).
Significa que é mais um número irrealista e sem critério que foi apresentado sem a estratégia a seguir para alcançar o respetivo objetivo. Nada estranho, pois, desde há seis anos, que não se conhece outro desígnio nacional para além da conservação do poder.
Significa que, a absoluta dependência dos ciclos eleitorais de curto prazo, faz com que quem não é "de fazer", vá gerindo a estrutura com medidas conjunturais, "varrendo para baixo do tapete todo o lixo", até ao dia em que se torna visível não haver soluções para problemas presentes.
Significa que, em quatro anos, o Primeiro-Ministro se compromete a fazer o que não conseguiu em sete anos, sem austeridade, sem imposições de "troikas", com os juros da dívida pública mais baixos de sempre, e com a maior abundância de apoios e de fundos da União Europeia.
Significa que o Primeiro-Ministro começa 2022 a desdizer-se, propondo, para uma parcela significativa de trabalhadores, uma diminuição do salário real em pelo menos 6%; ou seja, no final do ano o peso dos salários no PIB não será sequer de 45%, será efetivamente de 41%, pelo que este caso ilustra bem que os atos correspondem precisamente ao inverso das palavras.
Termino deixando uma sugestão ao Primeiro-Ministro. Se efetivamente pretende aumentar o salário médio em 20%, em termos reais, até 2026 sem perder competitividade então contribua para que a produtividade aumente. É produzindo mais bens e serviços com menos custos por unidade que se aumenta a produção e até se coloca uma pressão descendente nos preços. Para o efeito, troque-se "soundbites" por incentivos ao investimento através da redução de impostos, da burocracia, da celeridade da justiça, e do desenvolvimento de planos estratégicos setoriais e regionais.
Óscar Afonso, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade do Porto e sócio fundador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF)