Com a notoriedade dos vinhos portugueses a crescer no mundo, também a procura turística por este setor tem vindo a elevar-se. Para muitas empresas, o que começou como uma pequena unidade de receção de visitas e de provas, como forma de alavancar as vendas dos seus vinhos, foi evoluindo para espaços de restauração ou mesmo de alojamento. Mas não só. Há cada vez mais eventos de provas de vinhos um pouco por todo o país. Uma área de negócio em que Portugal "quer ser uma referência a nível mundial", ambição prejudicada pela falta de regulamentação específica.
Alexandre Miguel Mestre, advogado consultor da Abreu Advogados e empreendedor na área dos vinhos, não poupa críticas à situação, dizendo que o enoturismo "vive num limbo" porque é uma "terra sem lei", que não permite a quem está no setor saber, sequer, quanto vale esta atividade, quantos postos de trabalho assegura e que riqueza gera. "Não há qualquer legislação específica, o que obriga a que se tente aproveitar o que pode ser aplicável na que há, mas não é fácil. A Lei de Bases do Turismo diz que turismo implica pernoita. Portanto, o mais aproximado que existe para o enoturismo é o Regime Jurídico de Instalação e Funcionamento de Empreendimentos Turísticos, mas tudo isto implica que só podemos enquadrar o enoturismo na sua componente de alojamento, quando todos sabemos que é muito mais do que isso. São as provas, as harmonizações, as visitas a adegas e a espaços museológicos, são os cursos de vinhos. Há uma infinidade de atividades que, sem sabermos qual o seu enquadramento, não sabemos como tratar em termos fiscais, se no âmbito do turismo, da agricultura ou da cultura, em termos laborais e até ao nível do regime de publicidade", explica Alexandre Miguel Mestre. O direito "pode ser, também, um instrumento de promoção do crescimento económico", diz.
Os dados que existem são uma estimativa da Associação Portuguesa de Enoturismo (APENO), criada em 2020 para ajudar a profissionalizar o setor. Aponta a existência de 60 mil agentes económicos que dão emprego, direto e indireto, a 100 mil pessoas e geram uma faturação estimada de 410 milhões. O Dinheiro Vivo solicitou dados oficiais ao Turismo de Portugal, bem como um comentário às críticas e dificuldades apontadas pelo setor, mas sem sucesso.
"Sem código de IRS aplicável aos trabalhadores do setor e sem CAE específico [a Classificação Portuguesa das Atividades Económicas é o que identifica o ramo de atividade ou setor onde a empresa atua para efeitos fiscais] não consigo saber números de nada. Sendo um setor primordial, eu não sei quantas adegas praticam enoturismo em Portugal, quantas pessoas se dedicam a esta atividade e não sei qual o lucro que gera", lamenta a presidente da APENO.
CitaçãocitacaoA inexistência de um CAE específico impede a candidatura a fundos, já que, não havendo uma identificação do enoturismo, ele não surge identificado nos cadernos de encargos. A solução das empresas é tentar enquadrar as várias vertentes na atividade mais próxima, um desafio contabilístico.
Maria João Almeida garante que a associação tem sido "uma pedra no sapato" do governo, que "continua a não parecer interessado" na regulamentação do setor. "Queremos que o nosso enoturismo seja nivelado por cima. Itália é uma referência, mas nós também o queremos ser, a nível mundial, e temos capacidade para isso e para muito mais", defende. Até porque, acredita Maria João Almeida, o setor continua a crescer. A prová-lo está o facto de a APENO ter arrancado, em julho de 2020, com 40 associados e estar já a caminho da centena.
Na José Maria da Fonseca, o enoturismo é uma aposta com mais de seis décadas, já que foi nos anos 60 que a empresa começou a realizar visitas guiadas na sua Casa Museu, em Azeitão. A profissionalização aconteceu já no início deste milénio, sendo que, em 2015, a empresa abriu as portas do projeto de enoturismo na Adega José de Sousa, em Reguengos de Monsaraz. Hoje, o enoturismo vale 5% da faturação total da JMF e tudo indica que, em 2022, a "franca retoma" das atividades de turismo e eventos permita já ultrapassar os valores de 2019, o melhor ano de sempre, quando recebeu 40 mil visitantes de mais de 80 países. Os portugueses representaram 21% do total, seguidos dos EUA, Brasil e Alemanha.
Sofia Soares Franco, responsável de enoturismo da empresa, admite, no entanto, que "a falta de regulamentação específica e de enquadramento legal em nada ajuda esta atividade tão importante para as empresas produtoras de vinho". Sofia diz que o setor está, "desde sempre, numa zona cinzenta" e que se debate "há largos anos" pela clarificação desta situação. E dá exemplos, lembrando que a atividade de visitas e provas de vinhos não se enquadra na regulamentação da restauração e bares, mas também não é uma mera atividade de animação turística. Pior ainda foi a dificuldade na aplicação das regras da covid-19. " Vimo-nos muitas vezes bastante confusos, sem sabermos se nos devíamos reger pelas indicações dadas para a restauração, se para os museus ou para as atividades de animação turística", sublinha.
Paulo Osório, administrador na Porto Réccua Vinhos, é outro dos críticos da situação. Não só pela sua experiência na empresa que assegura a vertente comercial dos vinhos engarrafados produzidos pelas Caves Vale do Rodo - que reúne as adegas cooperativas da Régua, Tabuaço e Armamar -, mas porque é simultaneamente um empresário em nome individual no Douro, dispondo de uma propriedade com cinco hectares de vinha e olival, na qual gostaria de avançar com uma pequena unidade de wine entertainment, mas reconhece que, "não sabendo muito bem como enquadrar a atividade, tenho alguma dificuldade em convencer a família a investir".
A Porto Reccua Vinhos dedica-se ao enoturismo desde 2007, tendo transformado o posto de venda da cooperativa da Régua numa loja com provas e uma vertente museológica, mas quer agora evoluir, dando espaços dedicados a cada uma das marcas que a empresa vende, numa lógica "El Corte Inglés". O projeto, que está já desenvolvido, contempla ainda uma sala de provas, comentadas e devidamente harmonizadas, para grupos de 4 a 15 pessoas, procurando, assim dar a conhecer vinhos mais caros e aumentar o valor acrescentado do serviço prestado.
O investimento está calculado em 130 a 180 mil euros e o objetivo é que o novo espaço esteja em funcionamento no final do primeiro trimestre do próximo ano. Mas Paulo Osório já antecipa as dificuldades com que se vai deparar, começando pela questão da caracterização da atividade. "Se houvesse um CAE para o enoturismo seria fácil explicar aos meus colegas na administração e aos acionistas que vamos investir 180 mil euros e que, no espaço de dois ou três anos, esperamos ter um retorno tanto em vendas e serviços como em goodwill e notoriedade das marcas", diz. A contabilidade é um desafio. "Se eu quiser vender material de merchandising, saca-rolhas, rolhas, porta-chaves, etc., não há qualquer problema. Mas se quiser vender t-shirts, bonés ou impermeáveis já tenho que ter outro CAE, porque isso é venda de pronto-a-vestir. E as provas comentadas e harmonizadas são um serviço de bebidas e refeições, é tudo uma trapalhada", lamenta.
Os funcionários são outro problema: "O enoturismo não existe como tal, embora exija pessoas mais qualificadas, que saibam línguas e tenham disponibilidade aos fins de semana e durante a época alta. E que só podem ser enquadradas como funcionários de armazém ou de escritórios. Eu tenho de os encaixar na parte de escritórios como promotores de vendas ou vendedores".