Era uma vez a neutralidade da internet

A quarentena permite ver a internet como ela nunca deixou de ser: uma invenção capaz de compilar conhecimento e potenciar liberdades.
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1. A internet encontra-se sobre a enorme pressão técnica e humana do COVID-19. Sem a rede, reduzidos a um nada não-digital, estaríamos votados ao isolamento quase absoluto e à inoperatividade, único remédio em face das limitações biológicas das coisas que adoecem e que morrem. Quase totalmente digitalizados, somos hoje bits and bytes nas salas de trabalho e lazer a que chamamos Zoom, WhatsApp e Teams.

3. Este traçado, ligeiramente anárquico da internet, permitiu o desenvolvimento exponencial de um ecossistema de inovação sem par: acrescentaram-se camadas à rede, surgiram novos prestadores, desenvolveram-se apps e conteúdos aos milhões “em cima da internet”. A invenção do século passado evoluiu baseando-se em protocolos uniformes de encaminhamento que justificam a rapidez do seu gigantesco crescimento. A internet assenta, no fundo, num extraordinário esforço de concertação tecnológica que envolve fornecedores de acesso e criadores de conteúdos em torno de uma missão: manter a rede tão simples quanto possível, por forma a assegurar a sua disponibilidade para transmitir o que através dela se queira colocar online.

4. A necessidade de intervir no mercado das telecomunicações começou a sentir-se no EUA, em meados da década de 2000, na senda de vários casos de discriminação de tráfego por parte dos fornecedores de acesso (o equivalente às nossas NOS, Vodafone, Meo) relativamente a serviços VoIP (como o Skype) e de partilha p2p (exemplo do célebre BitTorrent). Após debate aceso, a neutralidade da internet vigorou enquanto Lei Federal até ao final de 2017, altura em que o regulador norte-americano, então empossado por Donald Trump, reverteu as normas vigentes, desregulando o mercado das telecoms. Por cá, a neutralidade da internet constitui norma jurídica na União Europeia desde 2016, por força do Regulamento da Internet Aberta. Este visa “proteger os utilizadores finais e garantir, simultaneamente, o funcionamento contínuo do ecossistema da Internet como motor de inovação”, expressamente conferindo aos cidadãos “o direito de aceder às informações e conteúdos que desejarem e de os divulgar, bem como de utilizar e fornecer aplicações e serviços sem discriminações”. A grande exceção prevista no Regulamento diz respeito a medidas de gestão do tráfego, isto é, formas de discriminação ou restrição no processamento dos dados, que se mostrem necessárias para operacionalizar uma rede de capacidade limitada. Em Portugal, a ANACOM publica um relatório anual sobre o tema e já interpelou o legislador com vista à criação de um quadro de sanções para os operadores incumpridores.

5. Também na internet se vive o estado de emergência, atestado pelo Decreto-Lei n.º 10-D/2020, de 23 de março, que estabelece medida excecionais aplicáveis ao sector das comunicações eletrónicas, destinadas a salvaguardar a capacidade de comunicações instalada para os intervenientes críticos. Medidas prudentes, é certo. Porventura precipitadas se atendermos à declaração conjunta da Comissão Europeia e do BEREC, assegurando a inexistência de grandes congestionamentos na rede europeia. Nenhum cuidado será de mais tendo presente que a Great Firewall of China se resume a um colossal desvio à neutralidade da internet, perpetrado por fornecedores de acesso controlados pelo governo chinês, resultante na total castração da liberdade de expressão naquele país. Como lembra o Prof. Alexandre Sousa Pinheiro, em relação a uma decisão recente da CNPD no âmbito do estado de emergência, não devemos tornar a exceção regra e o temporário permanente, sob pena dos soldados da internet não mais abandonarem as suas fileiras.

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