Nenhum lugar no planeta está livre de consumir bens e serviços que, de uma forma ou de outra, tenham usado trabalho escravo algures na sua linha de montagem. E, sem dar por isso, o telemóvel ou o computador onde lê esta notícia pode ter componentes fabricadas por escravos. Ou outra coisa tão inofensiva, como a roupa que vestiu hoje.
A conclusão é de um estudo divulgado na quinta-feira pela Verisk Maplecroft, multinacional de gestão de risco, que conclui que 58% dos países do mundo (115 Estados) estão em alto risco, ou mesmo extremo, de fazê-lo. Para chegar a esta conclusão, foram precisos 12 meses a analisar dados de 198 países.
Ou seja, o que o relatório procura saber é quantos países do globo importam matérias-primas produzidas com recurso a trabalho forçado. E quantos recorrem a ele. Porque para encontrar marcas de trabalho escravo num par de calças de ganga, não é preciso que os operários de uma empresa têxtil sejam explorados. A escravatura pode ter aparecido muito antes, no início do caminho, por exemplo, na apanha do algodão. Acontece no Uzbequistão.
É o caso da República Democrática do Congo, o mais importantes produtor de cobalto do mundo, que se encontra no topo da lista dos países em risco extremo, em quarto lugar. O cobalto que o Congo produz é depois exportado para diversos países que o usam para fabricar produtos de eletrónica, como telemóveis.
E mesmo que nessas fábricas, a milhares quilómetros de distância do ponto de origem daquela matéria-prima, os trabalhadores estejam satisfeitos e os patrões cumpram todas as normas legais, os produtos já foram manchados pela mão-de-obra escrava. Pode ser o caso do seu smartphone ou tablet.
As conclusões são, por isso, preocupantes: 13% dos países estão em risco extremo de ter na sua cadeia de fornecedores um país que recorra à escravatura moderna, 43% em risco alto, 34% em risco médio e apenas 8% em risco baixo. Entre estes, destacam quatro economias europeias - Reino Unido, Alemanha, Dinamarca e Finlândia como as únicas ocidentais a não pisar a linha do risco médio.
"Poucos países no mundo são realmente imunes à escravidão moderna", argumenta Alex Channer, analista principal da Verisk Maplecroft para a investigação dos direitos humanos.
Pelas contas da consultora, 46 milhões de pessoas espalhadas por todo o mundo estão a viver alguma forma de trabalho forçado. E a definição de escravatura moderna abrange diversas formas: o tráfico sexual, o casamento forçado, a servidão a terceiros por dívida contraída, o trabalho forçado propriamente dito e ainda os que nasceram já na servidão.
A lista negra: Coreia do Norte à cabeça
O pior dos piores, quando se fala de trabalho escravo, é a Coreia do Norte. Segundo o ranking da Verisk Maplecroft, ela aparece em primeiro lugar na lista de 198 países. Não é de estranhar. As notícias sobre trabalho escravo na Coreia do Norte não são estranhas à imprensa internacional e em 2015 foi a própria ONU a alertar para a situação.
Segundo Marzuki Darusman, o relator das Nações Unidas para aquele país, o governo da Coreia do Norte estaria a vender os seus próprios cidadãos como escravos a terceiros países: 50 mil norte-coreanos, segundo a acusação de Darusman, estariam a trabalhar 20 horas por dia, sem direito a comida suficiente e sob vigilância constante. Os países de destino seriam a China e a Rússia e a mão-de-obra seria para trabalhar em projetos de construção, minas, madeireiras e empresa têxteis.
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Estes são exatamente alguns dos pontos que a Verisk Maplecroft estuda: casos de tráfico de seres humanos, escravidão, leis laborais nacionais e até que ponto é que elas são de facto aplicadas. Porque de nada serve a lei mais restritiva do mundo se não for cumprida e fiscalizada.
À Coreia do Norte, segue-se o Sudão do Sul, o Sudão e a República Democrática do Congo. Índia (15.º) e China (23.º) fazem também parte da lista dos países em risco extremo, a que se acrescenta ainda a Costa do Marfim que, relembra o relatório, é um dos principais produtores de grãos de cacau.
A Índia, segundo um outro relatório divulgado em maio deste ano pela Walk Free Foundation, é o país onde há mais prevalência de escravatura. Em segundo lugar, está a Coreia do Norte. A associação fundada pelo milionário australiano Andrew Forrest, e que tem como objetivo acabar com a escravatura moderna, revela que em 2015 existiam 45,8 milhões de escravos em todo mundo, aumento de 30% face ao ano anterior. Em Portugal, os dados apontam para 12 800 pessoas escravizadas.
Na altura, o filantropo disse acreditar que o crescimento se deveu a métodos mais apurados de recolha de dados e não a um aumento da escravidão. E lançou o apelo, a empresas e empresários, para que procurem na sua cadeia de fornecedores por indícios de mão-de-obra escrava.
União Europeia: alerta amarelo
Mesmo com quatro economias europeias a conseguirem ficar no nível mais baixo de risco, a União Europeia tem risco médio de recurso a escravos. A explicação? "Regra geral, a maioria dos países têm excelentes quadros legais para proteção da escravatura. Mas onde eles variam é na forma como são realmente eficazes a implementar essas leis", concluiu Alex Channer.
Um dos alertas que é feito no relatório é em relação aos fornecedores de segunda e terceira linha e a casos em que existem subcontratações: "A maioria das multinacionais tem sistemas robustos para garantir que a escravatura não ocorre entre os seus principais fornecedores", lê-se no documento, que explica que esse sistema esfuma-se à medida que se avança na linha dos fornecedores.
Os exemplos são muitos: entre os 12 maiores exportadores de têxteis do mundo, só o Reino Unido e os EUA não estão em risco extremo ou elevado. Entre os 28 maiores produtores de grãos de cacau, nenhum escapa a essas duas categorias e o mesmo se passa com os maiores nove produtores de arroz.
"As empresas estão muito dependentes de produtos e matérias-primas da Índia e da China. No entanto, o recurso a estes países traz um risco substancial de associação ao trabalho forçado. O risco é endémico no sector agrícola da Índia e no do vestuário. A exploração de crianças no setor dos minerais também é comum. O trabalho forçado, incluindo a exploração de jovens, ocorre em vários sectores na China."
Daí, o alerta do australiano: “É preciso que as pessoas parem de negar que a escravatura existe.” Até porque ela, diz Andrew Forrest, afeta-nos a todos – "da comida aos bens que consumimos."
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