A última fábrica de comboios em Portugal fechou há mais de 15 anos. Mas o país vai precisar de mais de 1000 novas carruagens nas próximas duas décadas para renovar a frota ferroviária nacional. A Plataforma Ferroviária Portuguesa (PFP) é a organização que reúne as 70 empresas que cá produzem componentes para comboios. Joaquim Guerra é o presidente desta plataforma e explica ao Dinheiro Vivo o que é necessário para o regresso da indústria ferroviária nacional.
Portugal tem condições para voltar a fabricar comboios?
Portugal tem todas as condições para voltar a fabricar comboios. O melhor exemplo da capacidade industrial que o país tem é o próprio conjunto de membros da plataforma e a diversidade de contributos que os membros podem dar a um comboio. Atualmente, a produção de comboios não é mais do que a incorporação de componentes. Os grandes fabricantes terão um peso de 20 a 25%; tudo o resto é comprado fora. O setor ferroviário está na berra e tem um grande apoio da União Europeia. Temos de aproveitar isso. A plataforma pode ser um agregador e potenciar a construção de uma Autoeuropa ferroviária em Portugal.
Os operários ferroviários têm todas as competências necessárias para fabricar comboios?
O setor ferroviário tem muitas especificidades técnicas. Uma das maiores lacunas nos últimos anos é que não tem sido possível manter o saber fazer de uma mão de obra altamente qualificada - não só dos técnicos como de outras categorias - que são absolutamente essenciais na manutenção de material circulante. Neste ponto, estamos a preparar a construção de um centro de competências ferroviário em Guifões, com condições ímpares para o desenvolvimento que queremos dar ao setor.
A formação é uma das finalidades: queremos aproveitar o centro de competências para formar categorias profissionais que hoje em dia não temos possibilidade de captar no mercado. Há muita dificuldade em formar essas pessoas. Por exemplo, quando a CP lança um concurso, é necessário um semestre para que as pessoas fiquem aptas para trabalhar. O centro de competências quer mitigar o tempo necessário e permitir que a formação se faça em ambiente real, nas oficinas de Guifões, para que estes técnicos estejam automaticamente aptos para trabalharem. Isso repõe as necessidades do setor e mitiga as dificuldades de procura no mercado. A CP não consegue admitir técnicos oficinais em Lisboa.
Porque não consegue? Falta mesmo gente ou é por causa dos salários?
Em Lisboa, até há bem pouco tempo, parte do emprego precário assentava no turismo, onde se ganha mais do que numa oficina. Não somos competitivos nisso: o salário de entrada é de 700 euros. As pessoas têm alternativas onde ganham mais e não vêm. Com o centro de competências, as pessoas fazem o curso e sabem que têm emprego na CP e noutras empresas ferroviárias.
A ganhar mais do que 700 euros?
Sim, provavelmente. Ganham mais do que se entrassem no mercado regular. Acresce, por exemplo, que a refinaria de Matosinhos não está numa situação brilhante. Até aí, o centro de competências pode desempenhar um papel muitíssimo interessante.
É possível reconverter trabalhadores de uma refinaria para uma oficina da CP?
São sobretudo quadros técnicos: engenharia mecânica e eletrotécnica. No meio de tanta gente, poderá haver operários com qualificações para virem trabalhar. Naturalmente, terão de passar por um período de adaptação. O centro de competências pode captar mão de obra qualificada para potenciar o setor. Este centro terá três áreas fundamentais: formação, investigação e desenvolvimento, e incubação de empresas e de startups. Há empresas curiosas em ver este centro a funcionar.
Quando arrancará o centro?
Os estatutos estão fechados. Estamos a aguardar a aprovação. Acreditamos que a breve trecho será uma realidade. O ministro das Infraestruturas e da Habitação está muito entusiasmado. As instalações precisarão de ser adaptadas e é preciso acautelar a questão financeira.
Quantos milhões de euros são necessários para o centro?
É uma quantia considerável, de alguns milhões de euros. O Estado pode ter um papel fundamental: em Birmingham, no Reino Unido, houve uma injeção do Estado de 60 milhões; o hub de inovação em Espanha teve 30 milhões de euros de ajuda dos municípios locais.
O Estado tem tudo na mão para ser atrativa a captação de investimento estrangeiro: benefícios fiscais, simplificação de processos...são várias ferramentas à disposição para atrair os grandes fabricantes e empresas que queiram vir para Portugal. Com a injeção do dinheiro do plano de recuperação e resiliência, não tenho dúvidas de que a procura por material circulante vai ser muita e tenho seríssimas dúvidas de que os atuais fabricantes tenham capacidade para suprir essas necessidades. Portugal pode entrar aí e ser uma solução extremamente interessante. Temos da mão de obra mais qualificada do mundo e a preços muito mais interessantes.
Faz mais sentido Portugal ter uma fábrica por si só ou convidar um fabricante a instalar-se cá?
Não me repugna que possa haver cooperação com o fabricante. Portugal tem dezenas de anos de fabrico de material circulante: a grande maioria dos comboios a circularem cá atualmente foi montada em Portugal. Acho perfeitamente possível voltarmos a fazer isso. A nossa academia forma engenharia de altíssima qualidade e é uma peça essencial na plataforma e no centro de competências.
Quais são as universidades parceiras da PFP?
Temos, por exemplo, o Instituto Superior Técnico, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e a Universidade do Minho. Também há o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e o Instituto de Soldadura e Qualidade.
Os suíços da Stadler, depois de assinarem o contrato para a venda de 22 novos comboios regionais à CP, disseram que estavam à procura de parceiros nacionais. Já receberam algum contacto?
A plataforma recebeu contactos para as partes perceberem o que seria necessário fazer para poderem ser membros da plataforma. O nosso papel é mais de facilitador de contactos. Temos todo o interesse em que isto seja uma realidade.
Quantos empregos uma fábrica de comboios pode criar em Portugal, diretos e indiretos?
Ainda não temos esses dados. Mas poderemos esperar centenas de trabalhadores diretos e indiretos. É uma fábrica que exige muita mão de obra pesada.
Estes comboios seriam para consumo doméstico ou mais para exportação?
Numa primeira fase, seriam para consumo interno, mas também admito como plausível exportarmos comboios. Um dos papéis da plataforma é a internacionalização dos associados. Recentemente, tivemos uma reunião com os secretários de Estado da Internacionalização e das Infraestruturas, onde lhes demos a conhecer o que a plataforma pode agregar. Eles ficaram tremendamente entusiasmados. Estamos a preparar um catálogo de competências onde salientaremos as empresas-âncora da indústria. Contamos ter isso pronto em breve. É fundamental para uma organização como a nossa ter esse catálogo.
Que peças fabricadas em Portugal estão presentes nos comboios a nível mundial?
Na área das infraestruturas inteligentes e sustentáveis, comando e controlo de circulação, no próprio material circulante - permitindo diminuir os custos de utilização ao longo da vida. Também temos soluções para tornar o sistema ferroviário mais atrativo para os utentes.
Quando é que poderia surgir o primeiro novo comboio português?
É preciso criar um projeto com cabeça, tronco e membros, bem estruturado, de modo a que seja duradouro. Um projeto destes não pode estar sujeito à variação dos ciclos políticos. Tem de ser um programa estável.
Obrigaria a um compromisso político alargado ou bastaria o sim do atual Governo?
Tudo começaria com o sim do Governo mas depois tem de haver o compromisso alargado. Instalar algo desta natureza, com um investimento de milhões, não se pode deitar abaixo ao fim de dois ou três anos. Embora já tenhamos visto maus exemplos disso no passado, até mesmo em Guifões. Mas eu, como otimista, não tenho dúvidas de que haverá um compromisso alargado, com durabilidade suficiente para pormos isto de pé e termos material circulante português na ferrovia nacional.
Ainda seria nesta década?
Gostava que sim. Para mim, dez anos significaria quase meter os papéis para a reforma. Gostaria de a essa altura satisfeito de que o setor tinha dado o salto qualitativo que merece e que se justifica há muitos anos. Como ferroviário que sou, seria uma alegria poder ir-me embora descansado.
Foi a 23 de julho de 2015 que nasceu a Plataforma Ferroviária Portuguesa (PFP). Junta as principais entidades ligadas à ferrovia: operadores com CP, Fertagus, Medway e Takargo; fabricantes de componentes, como a Salvador Caetano ou a Almadesign; tecnológicas, como a Nomad Tech ou a Critical Software; e instituições, como a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, o Instituto Superior Técnico e a Universidade do Minho. Além da criação de projetos comuns, nacionais e internacionais, esta plataforma vai gerir o centro de competências para a ferrovia. A aposta nos comboios foi reconhecida pelo governo português em 2017, ao incluir a plataforma como um dos 20 clusters de competitividade.
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