Euro digital: Será já demasiado tarde?

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No início da década de 90, os franceses implementaram a tecnologia chip card nos cartões bancários, com o propósito de reforçar a segurança das transações eletrónicas. Mas, curiosamente, a inovação demorou largos anos até ser amplamente utilizada no mundo inteiro. Este atraso deveu-se a diversos fatores, entre eles, a preocupação dos agentes do setor financeiro em analisar com cuidado, cautela e tempo todas as implicações e funcionalidades que o chip card deveria conter. Na prática, este processo de estudo e investigação levou a que a adoção da tecnologia se atrasasse por mais do que uma década, sem resultados visíveis: Hoje, tal como há 30 anos, o chip card continua a ser utilizado, sobretudo, como garante da segurança das transações.

É comum ouvir dizer-se que a história não se repete. Mas olhando para o panorama das moedas digitais, creio que estamos a repetir os mesmos erros do passado. As criptomoedas, como a bitcoin, vieram para ficar e estão a mudar o sistema de pagamentos global. Uma das vantagens das moedas digitais assenta na capacidade de transferir dinheiro para qualquer parte do mundo em segundos, de forma instantânea - uma funcionalidade que o sistema financeiro tal como o conhecemos hoje não permite. Todos os dias milhares de milhões de dólares são transacionados com recurso às moedas digitais. No entanto, a resposta dos bancos centrais, nomeadamente, do Banco Central Europeu (BCE), ao crescimento das chamadas moedas digitais privadas - descentralizadas e, como tal, não reguladas por qualquer entidade supervisora - tarda em chegar. O tempo urge e os riscos de perdermos a oportunidade gerada pelas moedas digitais estão à espreita.

De acordo, com o estudo "The 2021 McKinsey Global Payments Report", divulgado em outubro último, 80% dos bancos centrais mundiais estão a realizar estudos com vista ao desenvolvimento de moedas CBDC (Central Bank Digital Currencies). O objetivo é unir a tecnologia e as funcionalidades das criptomoedas ao enquadramento legal associado ao funcionamento das moedas tradicionais.

No entanto, apenas 10% dos bancos centrais avançaram o suficiente nesta matéria para estarem numa fase de testes de projetos-piloto. Nesta corrida das moedas digitais emitidas pelos bancos centrais é a China quem segue na linha da frente. Os testes com o e-yuan chinês começaram no final de 2019 em quatro cidades e foram progressivamente alargados a outras regiões do território. Em novembro, existiam já 140 milhões de utilizadores individuais do yuan digital e 10 milhões de contas de empresas.

E por cá, como estamos? Bem, na Europa estudamos o tema. E vamos continuar a acompanhar, a discutir, a planear, equacionar, a avaliar e a monitorizar durante os próximos anos. Ainda este ano, o BCE anunciou o lançamento da fase de investigação sobre o projeto do Euro digital, que deverá estar concluída daqui a dois anos. Isto significa que a Europa não terá tão cedo uma resposta às criptomoedas e que o cenário mais provável é que uma moeda digital europeia veja a luz do dia no final da década.

Mas nessa altura poderá ser já demasiado tarde. A China, ao liderar a implementação de uma moeda digital, posiciona-se para destronar o dólar como moeda central das transações financeiras globais e colocar o euro para um plano secundário.

As gerações mais velhas até poderão ter algumas reticências em usar uma moeda digital chinesa. Mas os jovens já vivem na realidade das criptomoedas e não terão problemas em adotar esta solução. Dessa forma, quando a alternativa de moeda digital europeia for lançada, ela terá necessariamente de contemplar funcionalidades ou vantagens muito diferenciadoras para conseguir afirmar-se no mercado.

É certo que a tarefa de desenvolver uma moeda digital comporta grandes desafios e implicações para os bancos centrais. Estamos perante um mundo novo que exige uma mudança de paradigma e a criação de mecanismos que permitam mitigar os riscos associados. Mas é importante acelerarmos o passo, atalharmos caminho e passarmos à ação. Caso contrário, o Euro digital, quando surgir e se surgir, corre um sério risco de ser um "nado-morto".

Sebastião Lancastre, CEO & Founder easypay

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