A Infraestruturas de Portugal (IP) poderia ter feito muito mais para evitar o choque de um Alfa Pendular com um veículo de manutenção da via. A investigação ao acidente de 31 de julho de 2020 junto à estação de Soure, que provocou duas vítimas mortais e ainda três feridos graves, foi divulgada esta sexta-feira e também tem recados para a autoridade nacional de segurança e ainda várias recomendações para a CP.
O relatório elaborado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com aernoaves e acidentes ferroviários (GPIAAF) é fortemente contestado pela IP. A gestora da rede ferroviária nacional acusa a investigação de "análise enviesada e não objetiva do acidente, inservível mesmo para os efeitos que se propõe".
O gabinete de investigação responde que a pronúncia da IP "fixa-se em frases do relatório isoladas do seu contexto, contraditadas com argumentação muitas vezes sem base factual e desviada do sentido em que estão escritas, ignorando as numerosas situações referidas no relatório de ausência de evidências que lhe competia demonstrar existirem em cumprimento do seu sistema de gestão da segurança".
O acidente ocorreu pelas 15 horas e 26 minutos. Segundos antes, o veículo de manutenção da IP (desginado de VCC) ultrapassara, inadvertidamente, o sinal vermelho e entrado na linha principal. Ao mesmo tempo, o veículo da CP tinha acabado de passar o sinal verde na linha principal e recebeu indicação de via livre pelo sistema de controlo de velocidade (Convel). A informação de que a via, afinal, estava ocupada, já não chegou a tempo de ser vista pelo comboio da CP.
Quando o Alfa seguia a 180 km/h e a 400 metros do VCC, o maquinista apenas teve tempo para acionar a frenagem máxima. Ele e o colega em formação que estavam na cabina apenas tiveram tempo para se proteger e tentar avisar os passageiros. O Alfa embateu no veículo da IP a 155 km/h.
Um erro da tripulação na identificação do sinal é apontado pela investigação como a "explicação mais provável" para a ultrapassagem indevida. A tripulação do VCC "terá percebido a indicação do segundo sinal a contar da esquerda como dizendo respeito à segunda linha a contar da esquerda, aquela onde se encontravam parados".
O GPIAAF lembra que o erro humano "raramente é uma causa, mas sim a consequência de pré-condições não controláveis pelos trabalhadores de primeira linha", sendo "sendo pouco ou nada eficaz para a melhoria do sistema que as ações corretivas se dirijam ao operador de primeira linha que cometeu o erro".
A falta de sistemas de segurança, a ausência de análise ao excesso de velocidade nos veículos e de indicações na folha horária e a escassez de condições de trabalho foram as principais falhas apontadas pela investigação.
A IP tinha conhecimento de várias situações de ultrapassagem inadvertida de um sinal fechado pelos veículos de manutenção. Num relatório de 2018 relativo a um incidente em 2016 na estação do Areeiro, o GPIAAF tinha detetado 15 ocorrências deste género desde 2010 - até julho do ano passado houve 18 situações. O gabinete de prevenção emitiu recomendações para reforçar as competências dos maquinistas e ainda reforçar os elementos de segurança dos VCC.
A gestora da rede ferroviária nacional também tinha sido alertada para a localização dos sinais em Soure. Foi recomendada, na altura, a elaboração de um estudo para que a leitura pelos agentes de condução fosse inequívoca e evitar erros de interpretação. A IP nada fez em 16 anos, "tendo-se limitado a sustentar que os mesmos estavam de acordo com as regras e com as suas normas de projeto".
A investigação também apurou que o veículo da IP tinha chegado a Soure oito minutos e meio adiantados (15h12) face ao horário previsto (15h20) porque "foi sistematicamente ultrapassada a velocidade máxima regulamentar, de 60 km/h, tendo chegado a circular a 80 km/h".
A partir de uma amostra de 105 registos de velocidade, a investigação apurou que em 26% da amostra a velocidade máxima tinha sido ultrapassada. Os discos dos tacógrafos nunca foram analisados pela gestora ferroviária, que "não tinha qualquer controlo real e eficaz sobre o modo como as funções de condução e acompanhamento eram executadas".
Era uma prática comum e possível porque não havia um sistema de controlo de velocidade instalado. A IP esteve dois anos à procura de uma solução tecnológica mas enquanto o processo se prolongava no tempo "nenhuma medida temporária de efetivo controlo do risco foi tomada".
Segundo o gabinete, "só se pode concluir que o risco existente e evidenciado" no relatório de 2018 "foi assumido e aceite pelo gestor da infraestrutura até à data indeterminada em que a dita solução tecnológica viesse a ser instalada nos veículos".
O reinício da marcha do VCC ocorreu cerca de sete minutos antes da hora prevista no horário, o que estaria nas condições regulamentares desde que o sinal que lhe dizia respeito estivesse aberto - na realidade, não estava. Não foi possível à investigação confirmar se aquando da retoma do movimento o agente de acompanhamento se encontrava na posição que lhe competia, atrás do maquinista.
O agente que acompanhava poderia não estar no local devido porque não havia qualquer lugar sentado. A situação "propicia a fadiga do trabalhador".
Para o GPIAAF, "além de tal situação não ter paralelo em qualquer outro material motor que circule no nosso país", o trabalho em pé "pode inevitavelmente induzir, em viagens mais longas, a procura de um local para descansar, comprometendo a função de acompanhamento, nomeadamente a visualização dos sinais e confirmação das ações do maquinista". Naquele dia, a viagem entre Entroncamento e Mangualde iria durar mais de cinco horas.
A própria IP já tinha reconhecido a falta de condições na cabina do veículo como um fator de perigo mas nada vez para resolver a situação. O gabinete de investigação lembra que mesmo as centenárias locomotivas a vapor da CP têm espaço para os dois membros da tripulação se sentarem.
A indicação especial de ultrapassagem impressa no horário entregue aos tripulantes da IP também "constituiria mais uma redundância (barreira ao acidente), dando a conhecer e recordando ao maquinista do VCC que estava prevista a sua ultrapassagem por um comboio rápido".
A ausência de tecnologia para enviar alarmes também foi identificada pela investigação e "não há evidências" de que tenha sido feita uma análise de risco pela IP. Além da falta do Convel, não existia o sistema de rádio solo-comboio, que poderia emitir um sinal de alarme para impedir a circulação de outros comboios na zona. A IP aceitava que os maquinistas apenas tivessem um telemóvel para comunicar com o centro de comando operacional. A solução é falível por causa de eventuais falhas de rede.
Para a investigação, a "situação em que o maquinista conduz sozinho sem qualquer tipo de dispositivo de sinalização na cabina que, no mínimo, aplique a frenagem de emergência em caso de não confirmação, ou seja em que recai exclusivamente sobre ele o controlo do risco associado, é muito pouco comum na Europa. Quando existe é geralmente em linhas com muito pouco tráfego, baixas velocidades ou com disposições especiais de exploração". O acidente ocorreu na linha com mais tráfego do país.
A IP apenas tomou medidas de segurança depois do acidente. Por exemplo, mesmo nas linhas com Convel, os VCC só podem sair das linhas de resguardo com o sinal verde e com confirmação do centro de comando operacional. Medidas como esta seria de "implementação imediata e simples".
Concluiu a investigação que a empresa "tem plena capacidade técnica para identificar e introduzir imediatamente barreiras de segurança nos procedimentos constituindo medidas significativas de controlo e redução dos riscos identificados".
No entanto, a IP "mostrou não ter a capacidade para agir preventivamente e de forma adequada com base nos diversos incidentes similares que haviam ocorrido ao longo dos anos e cujos riscos foram explicitamente identificados e trazidos à atenção, nomeadamente pelo GPIAAF".
Cabe à autoridade nacional de segurança ferroviária, IMT, a verificação do cumprimento das recomendações. Na investigação, o GPIAAF entende que a autoridade "não fez um seguimento suficientemente diligente e permitiu" que a IP "permanecesse numa postura argumentativa sem cumprir com a determinação que lhe foi feita, nomeadamente a recomendada reanálise do risco da circulação dos VME em via aberta à exploração, ou sem manifestar que o risco existente era assumido e aceite".
No relatório, o IMT culpa a falta de pessoal pela "incapacidade de fazer o acompanhamento atento e célere que desejava" às recomendações do IMT.
Enquanto empresa que opera o comboio Alfa Pendular, a CP também é contemplada nas recomendações finais. O gabinete de investigação considera como "bastante minimalista" a informação de emergência nas unidades mais rápidas da transportadora, "não acompanhando as tendências atuais noutros países".
Também faltam instruções de evacuação e é necessário mostrar, com mais clareza, os vidros a quebrar em casa de emergência; nas portas, não existem indicações expressas sobre como os agentes de proteção civil as podem desbloquear e abri-las.
O relatório elogia ainda o comportamento das autoridades de socorro e da câmara de Soure "pela forma como acudiram as vítimas numa situação caótica e emergente". Para isso contribuiu a realização de um simulacro no local em 2014 e o acidente ocorrido em Alfarelos em janeiro de 2013, quando um comboio Intercidades embateu na cauda de um comboio regional.
Mais do que culpar uma empresa, o relatório do GPIAAF mostra caminhos para evitar que acidentes como o de Soure voltem a ocorrer na rede ferroviária nacional. Assim sejam seguidas as recomendações do gabinete de prevenção e de investigação de acidentes na aviação e na ferrovia.