Feliz 1919

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Com a nomeação no fim-de-semana dos ministros dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente, o presidente eleito Jair Bolsonaro fechou o seu governo com 22 ministérios em vez dos 15 prometidos em campanha eleitoral.

Como em política as aparências contam, Bolsonaro ter deixado para o fim aquelas duas pastas dá bem uma noção de quais são as suas prioridades – afinal, o Brasil desistiu de receber a maior conferência mundial sobre clima, cuja organização ainda há dois meses tinha sido celebrada por Michel Temer, hoje visto, imagine-se, como um paradigma de modernidade.

Desses dois ministros, que encerraram mês e meio de convites a conta-gotas, ouviram-se, no entanto, algumas das melhores pérolas do bolsonarismo.

Sugeriu Ricardo Salles, o novo ministro do Meio Ambiente, usar a bala, até porque a pólvora é o fetiche do novo regime, contra “três pragas”: o javali, a esquerda em geral e o Movimento dos Sem Terra, uma organização social que defende a reforma agrária.

Salles, que é alvo de uma ação por fraude ambiental, foi descrito pelo Observatório do Clima, uma organização ecologista, como “um ajudante de ordens” da ministra da agricultura nomeada, Tereza Cristina, a deputada que lidera a chamada Bancada do Boi, grupo supra-partidário criado para defender o lóbi dos latifundiários. Ele próprio foi sugerido para o governo pelas organizações ligadas aos grandes proprietários e, por isso, os mais interessados em desmatar a Amazônia, pulmão do Brasil e do planeta Terra.

Antes de Salles, foi apresentada a ministra dos Direitos Humanos Damares Alves, pastora do culto Evangelho Quadrangular que recusa encarar o aborto como questão de saúde pública, apesar das milhares de mortes a cada ano de mulheres pobres em operações clandestinas. Ela acredita ainda que “será a igreja evangélica, e não o governo, a mudar o Brasil”.

Para Damares, que assessorou um deputado que quis legislar sobre a cura gay, “ninguém nasce homossexual”. Ela, que assessorou também Magno Malta, o grotesco pastor íntimo de Bolsonaro, disse ainda que “a mulher nasce pra ser mãe mas infelizmente tem que ir para o mercado de trabalho”.

Antes já dois ministros, o da Relações Exteriores e o da Educação, haviam feito manchetes com as suas opiniões. Para o primeiro, Ernesto Araújo, o presidente dos EUA é uma espécie de salvador do mundo, alguém que, escreveu, “atua na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais”.

“Somente um Deus”, defendeu, “poderia salvar o Ocidente, um Deus [presume-se que Donald Trump] operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana”.

Araújo é um pregador contumaz contra o que chama de “marxismo cultural vigente”, onde se inclui a teoria do aquecimento global, mais ou menos a mesma visão de Ricardo Vélez, o novo titular da educação para quem existe no Brasil “uma doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista”.

Vélez acha ainda que a data do golpe de 1964, que resultou numa ditadura militar, deve ser lembrado e comemorado.

Nas escolas, sob Bolsonaro, vai portanto glorificar-se a ditadura militar, omitir-se um pensador incontornável, nem que seja para o detestar, como Marx e ensinar que a homossexualidade tem cura, logo é doença. Até já se fala em trocar o darwinismo pelo criacionismo. Será que o terraplanismo vai ser estudado?

Na política externa, vai demonizar-se o aquecimento global e adotar-se uma política de seguidismo bovino ao mais imbecil de todos os presidentes americanos.

Nas políticas sociais, os radicais evangélicos – leia-se Edir Macedo, Silas Malafaia e outros charlatães - vão ditar o ritmo. No ambiente, a Amazônia será vista como alvo a abater em nome de mais uns tostões para desgraça do Brasil, do mundo e do Brasil aos olhos do mundo.

E, caso alguém discorde, bala em toda a gente.

Mas se Bolsonaro mentiu em campanha no número de ministros, no conteúdo do seu governo está apenas a ser coerente com tudo o que prometeu: ele prometera, por outras palavras, que se votassem nele, no dia 1 de Janeiro o Brasil regressaria, feliz e contente, a 1919.

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