Festa do Avante. "Jovens podem contaminar pais e avós, mas há algo contra o PCP”

"A minha maior preocupação é que isto sirva para engordar o Chega e idiotices da chamada... nem lhe chamo extrema-direita. É ultra idiotice"
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Em entrevista ao Dinheiro Vivo, Álvaro Beleza, o novo presidente de um dos mais antigos think tanks [centros de estudos] de Portugal, a SEDES, defende de forma acérrima a ferrovia, a alta velocidade. Tem dúvidas sobre a necessidade de mais aeroportos. Diz que a vacina quando chegar, não vai ser para todos. Não acredita que haja segunda vaga da pandemia covid.

É um médico que vai ajudar a examinar o País. Álvaro Beleza tem 61 anos e é o diretor do Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria. É também professor de Medicina Transfusional, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Desempenhou diversos cargos na Ordem dos Médicos, tendo integrado o seu conselho nacional executivo entre 2007 e 2011. É militante do Partido Socialista desde 1985 e faz parte da Comissão Política Nacional desde 2011. Sente que é do PS “há muito tempo”

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Vai ser o primeiro médico a liderar a SEDES, uma associação que se dedica a refletir sobre os desafios económicos e sociais desde 1970. Nesta entrevista ao Dinheiro Vivo, diz que primeiro ficou surpreendido por ter sido eleito para presidente da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (a SEDES), mas logo percebeu a razão: são tempos novos e problemáticos, estamos a meio de uma pandemia grave. (Parte 4 de 5 da entrevista)

Que opinião tem da prestação do governo, como é que avalia a gestão da crise pandémica? No confinamento, as pessoas perceberam e o governo soube comunicar, mas no desconfinamento houve perturbações, algum ruído e depois resultados que saíram mal. As autoridades e o Governo podiam ter feito melhor no desconfinamento ou correu como era possível?

Acho que não correu tudo bem e não correu tudo como esperava o Governo, mas isso também faz parte da vida e, aliás, eu também comentei isso na televisão. Quando estávamos a aumentar aqui os casos, outros países estavam a diminuir, por isso entrámos na lista negra e os outros iam aumentar (como aumentaram) e eu tive razão. Tem a ver com as oscilações. Isto é uma pandemia e as curvas são mesmo assim. Isto diminui, depois aumenta, depois diminui. E portanto, Portugal teve esse problema, mas podia ter corrido melhor. A coisa que me mete um bocado de impressão, sou-lhe sincero, num desconfinamento, é não ter havido um critério único. Eu não percebo porque é que se pode ter um festival de música no Avante e não se pode ter estádios com capacidade para setenta mil pessoas, com vinte mil lá dentro, por exemplo, em filas com distância de segurança, percebe?

Entendo, mas o caso do futebol não poderá ser mais delicado por causa do grau de emotividade que existe durante os jogos?

Não, porque as pessoas sabem que nesta situação, proibindo o álcool nos estádios de futebol... Dividindo o Estádio da Luz, onde há estas finais... Se tivessem dividido as pessoas por vários sectores, teríamos muito menos gente, todos com máscara (máscara obrigatória), sítio fechado, simples e as regras são iguais para todos. Você pode estar ao ar livre desde que tenha máscara e que não estejam aglomerados de pessoas. Portanto, as regras têm que ser iguais para todos.

As regras são diferentes no caso dos partidos?

É como em tudo na vida. Essa é a única falha que eu deteto, isto é, a República vive dos partidos políticos, que são pilares fundamentais. Eu próprio sou militante do Partido Socialista, há muitos anos e com muito orgulho, e acho que as pessoas devem fazer militância política e devem dar a cara e dizer o que são, não é esta coisa de que 'eu sou independente', isso não existe. Nós temos uma cor, uma opinião, somos o que somos e os partidos são fundamentais. Não há democracia sem partidos. E portanto, têm que ser apoiados. Mas não uns mais que os outros. E portanto, numa situação destas, acho que isso é mau. É mau e preocupa-me até porque o Partido Comunista é um partido envelhecido, muito familiar, em que as pessoas são avô, avó, pai, mãe, filhos. Não é o único, mas o Partido Comunista é muito assim. Trabalhei muitos anos em Évora. Montei lá um serviço, adorei e conheço razoavelmente bem, e preocupa-me porque tenho receio que nessa festa, se forem para lá milhares de pessoas, os jovens possam contaminar pais e avós.

O Partido Comunista é conhecido pela capacidade de organização e disciplina e o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, disse uma coisa, pouco relevada, que é o facto de a Quinta da Atalaia ser um espaço enorme onde 33 mil pessoas por dia podem ser facilmente acomodadas com distâncias de segurança. Porque é que acontece isto à volta da Festa do Avante? Pode ser política, politiquice?

Também é um bocado. Há aproveitamento contra o PCP. Mas o que me parece é que podia ter sido permitido e começava uma crise brutal na cultura. Assim como alguns espetáculos em teatro e outros, e bem. Deviam ter sido permitidos espetáculos ao ar livre, desde que não houvesse álcool, por exemplo. Porque o álcool altera o comportamento e algum distanciamento. Regras: dividia-se o território... Eu acho que era possível fazer isso e porventura as coisas seriam mais aceites por todos.

O desconfinamento ficou aquém do que a economia precisava? Podia-se ter desconfinado mais, sem correr riscos?

O desconfinamento foi razoável, até correu bem. Aliás, agora, os números da pandemia são bons. Mas defendo critérios iguais para todos. Parece-me excessivo não se ter permitido nos estádios de futebol menos gente, muito menos gente...

São estruturas modernas.

Exatamente. E hoje em dia, se há coisa que a gente tem de melhor... Os nossos filhos estão informados. Toda a gente está muito mais informada. As pessoas não são estúpidas. As pessoas são razoáveis, são mais racionais, leem toda a informação. Não é possível tratar as pessoas como crianças, elas não são crianças. Também são crianças, mas as crianças hoje sabem mais do que nós quando éramos crianças. E portanto, tem que se ter muito cuidado para que as regras sejam iguais. E esta questão, já que estamos a falar do Avante, para mim, a maior preocupação é que isto sirva para engordar o Chega e idiotices da chamada... Eu nem lhe chamo extrema-direita... Acho que aquilo é ultra idiotice, sou-lhe sincero. Mas isto engorda, não é? Porque acho que temos que ter muito cuidado com a questão do tratamento igual para questões iguais. No geral, acho que o ministério esteve bem, a saúde esteve bem.

As políticas de contenção orçamental, de grande disciplina, no programa de ajustamento e já com o PS, de não ceder logo às reivindicações de atualizações salariais e de progressões. Tivemos isto na Educação e na Saúde. Não terá desmotivado as pessoas?

É verdade. E houve muita injustiça porque, no fundo, o sistema de saúde, que é mais moderno que outros sistemas do estado - estou a falar comparativamente com outros sectores do estado - não foi premiado por ser bom e teve cortes e só agora atingimos a média europeia em termos de financiamento da saúde. Nós estávamos aquém da média europeia. E isso foi injusto, acho eu, até para o sistema.

Tivemos anos de saúde pública subfinanciada?

Porque quem decidiu para onde vai o dinheiro percebeu que o sistema era tão bom que aguentava com menos dinheiro, mesmo errando. E é o que acontece Às vezes na gestão dos hospitais.

Estamos a falar de gestões de quanto tempo?

Estamos a falar de dez anos ou mais. Desde 2011, sim. Desde o programa de ajustamento. Foi brutal o corte na saúde.

E foi esse critério que presidiu?

Então, quando corta mil milhões de euros num ano... Ou em dois. É muito.

O Fundo Monetário Internacional e a Comissão Europeia sabiam que havia esse grau de eficiência. Encostaram-se a esses indicadores para forçar ou justificar o ajustamento financeiro que depois ocorreu?

Por um lado isso, por outro lado decidiram cortar onde era mais fácil e onde se cortava de uma vez, de uma maneira mais cega e mais brutal.

Mas isso é nas pessoas também, não é? Deixaram de se fazer admissões e congelaram-se as carreiras.

Isso é um problema e as pessoas estão muito revoltadas. Mas como se viu, quando foi preciso estes profissionais apareceram, têm amor à camisola.

O ministro da Economia Siza Vieira e a ministra da Administração Pública, Alexandra Leitão, já vieram dizer pode não haver condições para fazer as atualizações salariais prometidas, nas várias vertentes, no ano que vem. Acha que o pessoal da saúde, em concreto, vai receber isso bem?

Não. Mas admito que não haja dinheiro para aumentar a despesa no estado social, no pessoal. Mas é geral, não é só na saúde.

Mas se há mil milhões de euros para a TAP também devia haver para a Saúde, é essa a ideia?

Era o que eu lhe estava a dizer sobre a TAP. Tenho dúvidas em relação à TAP. Porque acho que estar a por mil milhões de euros... Mil milhões na saúde é brutal. Com mil milhões de euros na saúde pode-se fazer muita coisa, nomeadamente investimento. E não é só nas pessoas. Estou a falar em instalações, equipamentos que estão muito desgastados porque houve pouco investimento. Mas a saúde também tem que levar uma volta. E nós vamos abordar isso nesse grupo que lhe estou a referir, porque acho que também é possível, num sistema que funciona bem, haver muitas redundâncias. Eu sou diretor do serviço, mas também sou gestor.

No Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria.

Sim. Que tinha um orçamento de 25 milhões de euros em 2011 e hoje tem cerca de 17 milhões. Fazia por ano 20 mil consultas e hoje fazemos 55 mil. Portanto, vamos lá ver, é possível aumentar a capacidade, diminuir a despesa em questões redundantes e aumentar o investimento. É possível. Mas, que fique claro, nem sempre é possível.

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