
Acabar com o alojamento local (AL) em prédios destinados à habitação em Lisboa teria um impacto em cerca de 45 mil empregos que estão direta e indiretamente ligados à atividade. Os dados são avançados ao DN pela Associação do Alojamento Local em Portugal (ALEP) que critica o pedido de referendo entregue, na passada sexta-feira, pelo Movimento Referendo pela Habitação (MRH) na Assembleia Municipal da cidade e que defende o fim do AL em imóveis para habitação.
“O AL representa 46% das dormidas em Lisboa. Acabar com a atividade nestes moldes era mandar diretamente para o desemprego cerca de 45 mil pessoas em vários setores de atividade como o comércio, a restauração, os supermercados, a cultura, as empresas e as agências, por exemplo. Os gastos dos turistas do AL são transversais e não se circunscrevem apenas ao alojamento. Isto significaria matar a economia de Lisboa e acabar com metade do setor mais importante da cidade, seria um colapso económico”, alerta o presidente da ALEP, Eduardo Miranda.
Em causa está a iniciativa do MRH que, para responder à atual crise da habitação na cidade, pretende avançar com a realização de um referendo municipal para proibir a atividade do AL em prédios com uso habitacional. No último ano e meio, o grupo de cidadãos reuniu mais de 11 mil assinaturas, sendo que 6600 correspondem a eleitores recenseados em Lisboa. “A habitação deve servir para as pessoas morarem e não para alojamento turístico. É muito difícil viver em Lisboa, as rendas estão altíssimas e os preços das casas são impossíveis de pagar. Nas conversas que tivemos com os signatários sentiu-se o desespero em relação à questão da habitação e há vontade e urgência em que se faça alguma coisa para mudar esta situação”, explica ao DN a porta-voz do movimento, Ana Pereira.
A proposta é que sejam referendadas duas questões: “Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação?” e “Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imóveis destinados a habitação?”.
Eduardo Miranda não poupa críticas à iniciativa que apelida de “farsa”. “É um circo político. É uma petição que, por coincidência, todos acreditam que atrasou dois anos para sair justamente perto das eleições autárquicas. Foi uma mera manobra estratégica”, aponta. O presidente da ALEP acusa os partidos políticos de se escudarem da ação para “perseguir” o AL e “ganhar alguma vantagem eleitoral”. “Há partidos sem soluções para a habitação e atacam o AL. É lamentável que se aproveitem de pessoas que estão frustradas e têm os seus problemas sociais para as levar a assinar algo sem que lhes seja explicado quais poderão ser os impactos”, diz.
Já a promotora rejeita as acusações e garante que o movimento que representa é independente. “Este foi um processo muito participado, por todo o tipo de pessoas e com vários cidadãos de Lisboa. A acontecer, o referendo irá realizar-se em época de pré-eleições, na primavera de 2025, mas não foi algo pensado ou uma estratégia política”, assegura a investigadora no Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. Ana Pereira esclarece que as assinaturas foram recolhidas em fins de semana e nos tempos livres dos criadores do movimento o que justifica a demora do processo.
Referendo colide com a lei, mas pode condicionar autarquia
Da lista de argumentos para reprovar o referendo, enumerados pelo líder da associação que representa o AL no país, consta ainda o jurídico. “Pedir o encerramento de toda a atividade é ilegal. Há um vazio legal nesta proposta e a lei que acabou de entrar em vigor deixa claro como a água que não há nenhuma incompatibilidade [na exploração de AL em prédios afetos à habitação]”, adianta Eduardo Miranda.
O diploma a que o presidente da ALEP se refere, e que altera o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de AL , foi publicado em Diário da República em outubro e entrou em vigor a 1 de novembro.
O decreto-lei n.º 76/2024, que, no essencial, revoga medidas do pacote socialista Mais Habitação, delega nas autarquias um maior poder de decisão, em detrimento dos condóminos. Considera ainda compatível o exercício da atividade de AL em moradias e apartamentos mediante o cumprimento dos requisitos estabelecidos. Se até à entrada em vigor do novo diploma o condomínio tinha de dar luz verde à entrada de um novo AL num prédio de habitação, agora as regras mudaram. Desde o início do mês que uma deliberação do condomínio com o objetivo de proibir o AL “deve ser aprovada pela assembleia de condóminos por maioria representativa de dois terços da permilagem do prédio e produz efeitos para futuro, aplicando-se apenas aos pedidos de registo de AL submetidos em data posterior à deliberação”.
Para o advogado Miguel Ramos Ascensão o novo enquadramento legal responde às duas questões que o MRH quer ver referendadas em Lisboa. “A nova lei determina que os imóveis destinados à habitação não são impeditivos de AL, antes pelo contrário. É um dos requisitos para que o estabelecimento de AL seja licenciado. Se isso era uma dúvida foi dissipada pela legislação”, indica.
O especialista em direito imobiliário e urbanismo refere ainda não acreditar que o referendo possa, por si só, revogar a lei. “Esta iniciativa pretende quase tentar revogar uma lei da Assembleia da República através de um referendo municipal. É preciso ver em que moldes esse referendo poderia ter lugar e se teria capacidade para revogar aquilo que é uma lei aprovada por um órgão competente, que foi o Governo.”, adianta.
Já na questão do referendo que pretende ordenar o cancelamento dos AL em operação, o advogado questiona a legalidade. “Não faz grande sentido falar na revogação das licenças que estão atribuídas porque vai , com certeza, ferir a legalidade e do que é expectativa de qualquer investidor. Se nós vivemos num mercado livre e aberto não me parece que seja a solução. Quem investiu na última década as suas poupanças num negócio de AL veria comprometido o trabalho de uma vida se por acaso essas licenças fossem revogadas ao abrigo deste referendo”, refere ainda.
Miguel Ramos Ascensão explica que compete agora municípios fazer o levantamento sobre as áreas saturadas de AL e as que precisam de disponibilidade de imóveis destinados à habitação. “Uma das alterações mais interessantes do novo diploma é exatamente este aumento do poder das câmaras municipais para gerenciar a avaliação e a regulamentação da emissão de licenças de AL”, partilha. O especialista sublinha, contudo, a pertinência do mote do referendo que acredita que possa “condicionar, de alguma forma, o Executivo camarário a adotar uma posição de maior controle nesta regulamentação e os moldes nos quais a câmara irá agir no futuro”.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Outra das dúvidas que ladeia a iniciativa do grupo de cidadãos do MRH assenta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que data de 2022. “Este acórdão é o nosso mote e este pedido de referendo baseou-se nele”, enquadra Ana Pereira.
O acórdão em questão definiu que “no regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo de que certa fração se destina a habitação deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”. Miguel Ramos Ascensão defende que, atualmente, o enquadramento deste acórdão é “irrelevante” uma vez que há uma lei que lhe sucede. “Na altura que isso foi decretado, o STJ decidiu num sentido que é agora irrelevante porque foi a lei que, já a seguir à decisão, vai esclarecer exatamente o contrário. Ou seja, o acórdão foi deferido no âmbito de um enquadramento legal que existia àquela data e não existe mais”, elucida.
Novo regulamento
No início desta semana a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou a proposta da câmara para a suspensão imediata de novas licenças de AL na cidade até à até à entrada em vigor da alteração ao Regulamento Municipal do AL.
Eduardo Miranda espera que o município desenhe um regulamento de forma “ponderada” com base em estudos e “números objetivos” e com “medidas proporcionais nas freguesias. “É preciso uma regulamentação equilibrada. Na Assembleia Municipal de Lisboa, principalmente na oposição, não há interesse em encontrar soluções. Ainda assim, quero acreditar que mesmo com as guerras de disputa de poder político, haja o mínimo de responsabilidade”, remata o presidente da ALEP.