O conselho executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI), onde têm assento os 190 países associados do FMI, iniciou na passada terça-feira uma investigação e avaliação às más práticas e tráficos de influência que possam ter sido cometidos pela atual chefe máxima da instituição, a economista Kristalina Georgieva, no sentido de favorecer a China nos rankings de competitividade globais do Banco Mundial (os relatórios Doing Business -- Fazendo Negócios, em português -- em particular a edição de 2018)..Antes de ser diretora-geral do FMI, cargo para o qual foi conduzida vai fazer dois anos (no próximo dia 1 de outubro), a economista búlgara foi presidente executiva (CEO) do Banco Mundial, a instituição irmã do Fundo responsável pelos muito populares estudos e rankings Doing Business, que servem para mostrar a investidores e políticos o quão atrativa e estável é uma economia..O Banco Mundial encomendou uma auditoria independente à consultora Wilmer Hale (WH) e uma outra interna para tentar ter mais provas e relatos sobre algo de que já se suspeitava há meses. No passado dia 16 de setembro, o BM divulgou a referida auditoria..Alegadamente, dizem os auditores, a então CEO Georgieva e o próprio presidente (chairman) do Banco Mundial, Jim Yong Kim, dos EUA (de origem sul-coreana), foram muito ativos e manipularam quase diretamente os rankings a favor da China (no Doing Business 2018) e de outros três países (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Azerbaijão) na edição de 2020, revela a consultora com a permissão do Banco..O caso é muito delicado e vem beliscar, de novo, o histórico de contratações do Fundo baseado em Washington para o seu mais alto posto. Nos últimos 20 anos, o FMI teve cinco diretores-gerais (o equivalente a CEO). Três deles tiveram problemas, alguns de enorme gravidade e com implicações extensas no tempo. Mesmo depois de saírem da instituição..Doing Businessgate.No caso Georgieva, primeiro, foi o Banco Mundial. Um porta-voz da instituição diz que "a confiança nos estudos do Grupo Banco Mundial é vital", eles "dão informação aos decisores políticos, ajudam os países a tomar decisões bem fundamentadas" e que "as partes interessadas avaliem com precisão as melhorias económicas e sociais"..Estudos como o Doing Business e outros "são ferramentas valiosas para setor privado, sociedade civil, meio académico, jornalistas e outros pois amplia a compreensão dos problemas mundiais"..Infelizmente, continua o BM, "depois de serem comunicadas internamente, em junho de 2020, irregularidades nos dados dos relatórios Doing Business 2018 e 2020, a administração do Banco Mundial suspendeu o relatório Doing Business seguinte e iniciou uma série de análises e auditorias no relatório e na sua metodologia"..Pior. As auditorias internas entretanto feitas "levantaram questões éticas, incluindo a conduta de ex-membros do Conselho de Administração, bem como de atuais e/ou ex-funcionários do Banco"..Na auditoria da Wilmer Hale há relatos algo impressionantes de altos oficiais e outros intervenientes próximos a dizerem que Georgieva intercedeu pessoalmente, agindo de forma contundente para melhorar artificialmente os rankings a favor da China, ordenando que se assumissem como boas reformas políticas e legais sobre as quais há sérias dúvidas, ou incorporando indicadores da economia muito desenvolvida que é Taiwan (território que não reconhece a soberania da China, mas que a China diz que lhe pertence) para ajudar a aprimorar o retrato final..Um dos relatos na auditoria diz mesmo que, numa tentativa de última hora para beneficiar a imagem da China, Georgieva deslocou-se pessoalmente à casa de um dos responsáveis do estudo por forma a "resolver o problema"..A CEO do Banco Mundial admitiu que isso aconteceu, mas só uma vez, mas diz que não se lembra da razão que a levou a fazer tal visita fora do horário de expediente..Alegadamente, refere o levantamento dos auditores, a economista também fez pressão através de emails, telefonemas, em reuniões, mandou recados através de outras pessoas. Há imensos relatos preocupantes que a implicam..O Banco Mundial disse esta semana que "após a análise de todas as informações disponíveis até o momento sobre o relatório Doing Business, incluindo as conclusões obtidas a partir de análises e auditorias anteriores e o relatório que o Banco divulgou em nome do Conselho de Diretores Executivos, a administração do Grupo Banco Mundial tomou a decisão de deixar de publicar o Doing Business"..A instituição refere que "de agora em diante, trabalharemos numa nova abordagem para avaliar o clima de negócios e investimentos" e, ato contínuo, agradeceu aos "muitos funcionários que se dedicaram com afinco para promover a agenda do clima de negócios"..Nesse dia, Georgieva reagiu: "Discordo fundamentalmente das conclusões e interpretações" da consultora WH. E mais não disse..Já o FMI, que tem um conselho executivo onde têm assento 24 diretores, que no seu conjunto representam 190 países e territórios seus associados, não deu qualquer respaldo a Georgieva e disse que também vai escrutinar o caso, que interfere diretamente na imagem daquela que é uma das instituições mais poderosas e influentes do mundo..A bomba de Washington seria largada já era noite e madrugada na Europa na passada terça-feira. O porta-voz do FMI, Gerry Rice: "O Conselho Executivo do FMI reuniu-se para um briefing inicial do Comité de Ética sobre o assunto relacionado com o suposto papel da diretora-geral Kristalina Georgieva no Doing Business 2018 do Banco Mundial, conforme descrito no Relatório da Investigação [da consultora WH]".."Até agora, o Conselho discutiu as deliberações do Comité de Ética e teve uma troca preliminar de pontos de vista sobre o relatório e a declaração da diretora-geral sobre o assunto"..Ainda assim, "o Conselho Executivo do FMI enfatiza a importância que atribui à realização de uma avaliação completa, objetiva e oportuna e concordou reunir-se novamente e em breve para uma nova discussão", acrescentou Rice, norte-americano, nativo da Escócia e um quadro histórico do FMI (onde está há 15 anos, desde 2006). Antes disso, serviu 25 anos no Banco Mundial..O FMI tem uma administração executiva de 24 pessoas, dirigentes que representam grandes países e grupos de soberanos de menor dimensão. Os seis países com maior poder de voto na instituição são, por ordem decrescente: Estados Unidos (16,5% do total de votos), Japão (6,14%), China (6,08%), Alemanha (5,31%) e França e Reino Unido (ex-aequo, com 4,03%)..Strauss-Kahn demite-se.Antes deste caso Georgieva, o FMI foi abalado e o mundo foi confrontado por um escândalo sexual (acusado de tentativa de violação de empregada de hotel em Nova Iorque) que envolveu o francês, uma alta individualidade do Partido Socialista, Dominique Strauss-Kahn. Teve de se demitir do cargo em 2011 no dia dos fatídicos acontecimentos, quando tentava sair dos Estados Unidos, já no aeroporto. Viria a ser perdoado pelos tribunais norte-americanos, mas nunca esquecido..Antes do escândalo, Strauss-Kahn era o nome mais forte para disputar as eleições à Presidência de França. Nunca concorreu. A sua carreira política ainda é dada como acabada..A queixosa de abuso sexual, Nafissatou Diallo, de origem guineense, viria a aceitar um acordo financeiro em tribunal para encerrar definitiva e rapidamente o processo, mas há um ano (portanto, nove anos volvidos), deu uma entrevista exclusiva à revista francesa Paris Match. "Se ele [Strauss-Kahn] fosse pobre, estaria preso", desabafou..Os safaris de Rato.Antes do francês, foi o espanhol Rodrigo de Rato. Pediu para sair do FMI por "razões pessoais" em 2007 e depois seria presidente do Bankia, banco que supostamente iria ser a salvação do sistema de caixas de aforro regionais espanholas, mas que deixou colapsar e que faliu em 2012 (teve que ser parcialmente nacionalizado)..Dois anos depois, o também ex-governador do Banco de Espanha e ex-vice-presidente do governo de direita (PP) de José Maria Aznar, Rato seria acusado de fraude e lavagem de dinheiro..Uma das histórias que se conta dessa altura remonta a 2014. A acusação refere que Rodrigo Rato e dezenas de pessoas da elite de negócios espanhola usaram e abusaram das facilidades que lhes eram concedidas por serem dirigentes de topo. Há relatos de terem sido gastos pelo menos, 15 milhões de euros "em discotecas, safaris e artigos de luxo", tudo pago com cartões de crédito da Caja Madrid e do Bankia. Também não foram pagos impostos no meio disto tudo..Como se não bastasse, um ano depois disto o seu nome aparece com estrondo nos Panama Papers. Foi acusado ainda de fuga ao fisco e acabou condenado. Está na prisão desde outubro de 2018..Lagarde e Köhler.Enquanto Rodrigo Rato caiu em desgraça, mas já depois de sair do FMI, o caso Doing Business apanha Kristalina Georgieva mais ou menos a meio do seu mandato. A economista búlgara entrou para o posto mais alto do Fundo a 1 de outubro de 2019..Mas nem todos os altos dirigentes mais recentes daquele que já foi um dos maiores credores de Portugal na sequência do programa de resgate e de ajustamento são um nome problemático ou tóxico no histórico da instituição..O nome mais sonante é Christine Lagarde que foi líder da instituição durante os anos de chumbo da crise da dívida pública, entre 5 de julho de 2011 e 12 de setembro de 2019. Saiu e foi promovida a presidente do Banco Central Europeu, outra das entidades mais poderosas do planeta..Antes de Rodrigo Rato, o FMI teve como diretor-geral Horst Köhler, entre maio de 2000 e março de 2004. Neste ano, o democrata-cristão viajaria de Washington para Berlim para se tornar Presidente da República Federal da Alemanha.