Fundos americanos com mais de mil milhões de euros para financiar

Estima-se que faltem pelo menos 80 mil fogos nos próximos anos. Estado deveria criar um Ministério da Habitação com poderes para decidir com urgência e envolver a iniciativa pública, privada e o setor social, defendem especialistas.
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"Temos de criar um programa de emergência para a habitação, senão dentro de poucos meses - e não anos -, haverá muita gente a dormir debaixo da ponte. Há tanto dinheiro para investir que ninguém se pode escusar com a falta dele", afirma José Almeida Guerra, CEO da Rockbuilding, durante o debate DV Talks dedicado ao tema "Desafios da Habitação em Portugal". O evento online, disponível no site do Dinheiro Vivo, moderado pela diretora do Dinheiro Vivo, Joana Petiz, contou com a participação de José Almeida Guerra, Fernando Santo, presidente do Conselho Português da Construção e do Imobiliário da CIP, e de João Freitas Fernandes, sócio-gerente da FCC-Gestão de Projetos Imobiliários. José Almeida Guerra conta com 45 anos de experiência no ramo da construção e imobiliário, e a sua empresa atua na área da gestão integrada de projetos. Fernando Santo, engenheiro civil de formação, foi Bastonário da Ordem dos Engenheiros, secretário de Estado da Administração Patrimonial e Equipamentos do Ministério da Justiça, administrador da EPUL e do Banco Montepio, tendo ainda assumido outros cargos. Também João Freitas Fernandes, engenheiro civil, tem larga experiência neste setor e, além de sócio-fundador da FCC, passou pelo Grupo SIL, sendo ainda docente convidado do ISEG.

Em formato de mesa-redonda, os três especialistas levantaram pertinentes questões sobre o atual panorama do setor da habitação, concordando, em pleno, que esta é uma questão de máxima urgência nacional, à qual não se pode continuar a fechar os olhos. Na sua intervenção inicial, Almeida Guerra explicou que a falta de habitação em Portugal, sobretudo para as gamas média e média baixa, é um fenómeno habitual - embora se vislumbre mais nos centros urbanos, afeta também vilas e aldeias do país -, porém, esta questão tem vindo a agravar-se nos últimos 10 anos.

Afirma o responsável que, apesar de estarmos numa crise económica, há muito dinheiro disponível para investir, cerca de 70 mil milhões até 2030, seja dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), seja do Portugal 2020. "Entendemos que este dinheiro deve ser canalizado para atividades reprodutivas, e a maior crise será gerada por não termos juízo a aplicar este montante. O governo disponibilizou deste primeiro pacote do PRR cerca de 2,7 mil milhões para a habitação, o que representa mais ou menos dois milhões de metros quadrados, ou seja, 20 mil fogos. Mas, acredita-se que, nos próximos anos, tenhamos falta de 80 mil fogos. Aliás, há quem fale já em 100 mil", afirma.

Isto significa, para o especialista, que é necessário que a iniciativa privada, e até o terceiro setor, como as misericórdias, tenham de dar a sua contribuição para a resolver a situação, porque isto não é um problema do Estado, mas sim, um problema nacional.

Quanto a soluções, Almeida Guerra acredita que esta não seja uma questão difícil de resolver, porque há fundos de investimento desejosos de aplicar aqui dinheiro a rentabilidades de 2,5% a 4%, desde que haja condições. Afirma ter conhecimento de uma grande entidade americana que tem disponíveis mil, dois mil e até três mil milhões de dólares para financiar habitação, mas, para isso, necessita de regras claras, de estabilidade. "Os investidores querem garantias. Não se pode mudar a lei hoje e amanhã chega outro político e muda as regras novamente. Estes fundos emprestam dinheiro a muito longo prazo para financiar a nossa política de habitação, porque Portugal é um risco bom, e não estamos a aproveitar para captar este investimento, o que é uma pena", explica. "O problema da habitação em Portugal não é uma questão de dinheiro, é uma questão de definir uma política clara e sobretudo de querer fazer. Tem de haver uma decisão forte de construir e estamos nesta situação de preços altos porque há muita falta de oferta", afirma ainda.
Por isso, os três especialistas defendem em uníssono que a questão da habitação deve ter um centro nevrálgico de decisão e de execução, que poderá até ser chamado de Ministério da Habitação, com plenos poderes para decidir. "Não faz sentido repartir o poder por várias eiras onde ninguém sabe malhar. Por isso, tem de ter pessoas competentes à frente, já que este é um problema técnico, das áreas da engenharia e da sociologia, e o seu governo tem de ser eficiente. Precisamos de maior agilidade nos licenciamentos e de disponibilidade de terrenos públicos para ter preços aceitáveis", explica Almeida Guerra.

Com ele concorda João Freitas Fernandes que afirma que só se anda para a frente se este assunto for levado a sério. "Ter um Ministério da Habitação a sério, ter pessoas experientes a sério, descentralizar o que for possível descentralizar", afirma. O especialista iniciou a sua intervenção fazendo uma retrospetiva histórica, que mostra o que tem sido feito nos últimos 100 anos, e que apesar de terem sido promovidos muitos programas, o problema de fundo sempre persistiu. Em 1982, faltavam cerca de 500 mil fogos e apenas se resolveu 10% dessa lacuna. Nos últimos 10 anos, pouco ou nada se construiu - apenas uma média de 15 mil fogos ao ano. Em jeito de resumo, João Freitas Fernandes diz que temos "um parque habitacional público de 120 mil alojamentos, o que representa apenas 2% do total. Holanda, Áustria, França e Reino Unido têm entre 15% e 35% de parque habitacional público destinado a rendas acessíveis. Temos um milhão de edifícios a necessitarem de obras de reparação, dos quais 60 mil estão muito degradados. Temos 26 mil famílias com graves carências habitacionais". Segundo o especialista, o PRR prevê um investimento de 1200 milhões de euros para dar resposta habitacional a 26 mil famílias e que, feitas as contas, isto dá pouco mais de 45 mil euros por cada habitação. Esclarece ainda que o governo prometeu 170 mil novas casas até 2026, mas duvida que isso seja sequer possível, sobretudo nesta conjuntura de tempestade perfeita. Falamos da instabilidade que já se sente na economia, com a pandemia, com a crise energética, com a inflação em valores de há 30 anos e com a consequente subida das taxas de juro. "Os custos da construção a aumentarem cerca de 25% desde 2019", afirma. Citando Vítor Reis, o ex-presidente do INH, João Freitas Fernandes diz que "o PRR é um balão de oxigénio num doente em estado terminal".

Já Fernando Santo inicia a sua intervenção dizendo que "não deixa de ser um grande incómodo, assistir, nos últimos 10 anos à destruição do que se conseguiu fazer nos 20 anos anteriores. Conseguimos fazer a Expo, que foi um bom exemplo de como se conseguiu centralizar uma operação daquelas com o poder, as empresas e meios necessários e tudo aconteceu. Hoje não conseguiríamos, seguramente, fazer a Expo". Explicou à audiência que, entre 1991 e 2011, o número de alojamentos aumentou uma média de 84 mil fogos por ano. "Em 2002, foi o ano em que se atingiu o maior número, 125 mil fogos. Nos últimos censos, relativos a 2021, em 10 anos aumentámos 122 mil fogos no total. Menos do que num só ano do período anterior", afirma.

Segundo afirmou, o problema maior é saber se teremos agora empresas para dar resposta às necessidades e aumentar a produção de habitação para o dobro ou para o triplo. Entende que não, porque as políticas da troika destruíram o setor da construção em Portugal, quer nas obras públicas quer na habitação, ao terem uma visão meramente financeira. "Destruímos metade do setor empresarial da construção, foram mais de 300 mil os desempregados. E ainda houve uma consequência muito grave: é que todas aquelas pessoas, bons técnicos que tinham experiência e passavam experiência aos mais novos, desapareceram e perdeu-se todo esse conhecimento", refere a propósito. Ou seja, não houve planeamento de médio e longo prazo, e somado à falta de capacidade produtiva ainda encontramos o problema dos licenciamentos. "Estamos a assistir a uma burocracia que só faria sentido se tivéssemos 10 vezes mais procura de licenciamentos de edifícios do que as necessidades. Só em Lisboa e Porto, em 2021, os licenciamentos caíram 20% e, no primeiro trimestre deste ano, reduziram-se 60%. E depois falam em promover habitação?", questiona Fernando Santo. A verdade - prossegue - é que os portugueses têm hoje habitação que custa o dobro por metro quadrado do que custava há 10 anos e o seu rendimento é o mesmo. A solução que vê é uma concentração de poderes como se fez com a Expo e, por outro lado, implementar políticas que deixem as ideologias de lado e deixar entrar os fundos. "Portugal precisa ter mais fogos para o mercado do arrendamento, pois não é a compra de habitação que resolve os problemas dos jovens. Antes do 25 de abril, 48% da produção anual era destinada ao arrendamento", afirma. É necessário produzir mais para arrendamento e a preços que os portugueses possam pagar. Outra solução para baixar preços é ir buscar milhares de lotes de terrenos que estão na mão da banca e passar a ser possível vender imóveis da banca por acabar, ainda sem licença de habitabilidade, sugere.

"É preciso que se perceba que as políticas de habitação são necessárias para o próprio crescimento económico do país, para manter as pessoas. Se não se resolver o problema da habitação, os nossos jovens quadros vão para o estrangeiro, porque cá não têm rendimentos nem habitação. Eu estou farto de estudos, o que faz falta é arregaçar as mangas e fazer", remata José Almeida Guerra.

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