
Pela primeira vez, em muitos anos (mais de sete), grandes investidores e operadores do mercado financeiro global foram ao Banco Central Europeu (BCE) levantar questões sobre a dívida pública de Portugal e Espanha, Estados soberanos que foram mencionados, de forma explícita, numa reunião de alto nível que decorreu em Frankfurt, no final de junho.
No encontro, estavam cinco dirigentes de topo do BCE mais de 20 representantes de grandes bancos, seguradoras, fundos e gestoras de ativos internacionais, como Citigroup, Commerzbank, Axa, HSBC, Generali, JP Morgan, Morgan Stanley, Nomura, além de dirigentes de instituições financeiras europeias como o Mecanismo de Estabilidade (ESM), o Banco Europeu de Investimento (BEI) e a Comissão Eurpeia.
Estes encontros do chamado ECB Bond Market Contact Group (Grupo de Contacto do BCE para o Mercado Obrigacionista), onde a autoridade presidida por Christine Lagarde é a anfitriã, foram inaugurados em janeiro de 2013, estava a Europa e a Zona Euro a debater-se com a sua maior crise de sempre, que ia fazendo implodir a união monetária, de tão agressiva que foi.
Na altura, o presidente Mario Draghi quis ouvir de forma mais próxima e regular os operadores dos mercados da dívida, onde foi desferido o maior golpe sobre a Zona Euro, logo em 2011 e 2012, com a capitulação financeira de países como Grécia, Portugal e Irlanda.
Essas reuniões mantiveram-se até hoje. No ano passado, houve cinco encontros. Este ano, haverá quatro. Houve um em março, outro em junho e estão previstos mais dois (setembro e novembro).
De acordo com a ata (sumário) publicada pelo BCE a 1 de julho (resumo do último encontro de alto nível com os operadores obrigacionistas, que decorreu a 26 de junho), os casos de Portugal e Espanha foram mencionados por aspetos positivos, mas também por começarem a surgir dúvidas sobre a "complacência" excessiva dos mercados que tem permitido travar subidas muito acentuadas dos juros, algo que pode deixar de acontecer.
Sete anos depois
O caso português não era comentado de maneira tão explícita desde maio de 2017, quando as taxas de juro da República estavam a cair a pique, batendo sucessivos mínimos históricos.
Segundo a ata, o tom agora é ligeiramente diferente.
Os participantes ou membros deste grupo de contacto do BCE reconhecem, ainda que de forma implícita, que os dois países têm feito progressos nos "fundamentos orçamentais", o que, por exemplo, tem permitido a bancos e fundos fazerem bons investimentos.
"Os investidores procuram tirar partido das oportunidades de valor relativo quando estas surgem e colocam especial ênfase nas perspetivas orçamentais individuais dos emitentes da Zona Euro", diz o documento.
Neste contexto, num primeiro comentário mais positivo, "foi salientado que o mercado discrimina entre diferentes emitentes [Estados] com base nos seus fundamentos orçamentais, o que foi evidenciado por movimentos de spread [margem das taxas de juro] em jurisdições como Portugal e Espanha".
Isto traduziu-se, por exemplo, numa redução importante do prémio de risco das obrigações portuguesas e espanholas (endividamento de longo prazo, dez anos) face às alemãs (os títulos tomados como referência por serem os mais seguros.
Esta aproximação das taxas de juro de dois países ainda muito endividados e com um historial de "delinquência" nas contas públicas (ambos resgatados na altura da crise da Zona Euro) tem sido relevante.
Desde o final de 2023, o aumento das taxas portuguesas e espanholas foi na ordem de duas décimas (para 3,1% e 3,2%, respetivamente. A subida dos juros alemães foi duas vezes mais rápida: agravamento superou as quatro décimas, o que põe a Alemanha a pagar uma taxa de juro que ontem estava nos 2,5%.
Acresce que, recentemente, ambos os países foram elogiados pela Comissão Europeia na avaliação do Semestre Europeu (ciclo de 2024).
Espanha e Portugal "já não registam desequilíbrios macroeconómicos, uma vez que as vulnerabilidades diminuíram globalmente", afirmou Bruxelas. "Os riscos para a sustentabilidade orçamental serão analisados ao abrigo das novas regras", mas a CE já consegue concluir que os dois países "mantêm a capacidade de reembolsar a sua dívida".
Segundo vários participantes na reunião no BCE, esta perceção de que Portugal e Espanha agora são melhores "pode levar a alterações na hierarquia prevalecente dos spreads entre vários emitentes da área do euro".
"Mercado pode estar algo complacente"
Foi aqui que "alguns membros adoptaram uma nota mais cautelosa relativamente às perspetivas para os mercados obrigacionistas, particularmente no médio prazo [mais de um ou dois anos]".
Alguns desses agentes da alta finança global sugeriram mesmo "que o mercado pode estar algo complacente e que uma maior deterioração da disciplina orçamental, aliada a um risco político crescente, poderá conduzir a um ambiente mais desafiante para os mercados obrigacionistas".
Segundo as mais recentes previsões da Comissão Europeia, depois do excedente recorde de 2023 (1,2% do Produto Interno Bruto ou PIB), Portugal deve continuar a entregar excedentes neste ano (0,4% do PIB) e no próximo (0,5%). O ministro das Finanças diz que sim, mas é ligeiramente menos ambicioso nos saldos positivos.
A questão é que a fatura com os juros não pode falhar. Este andamento previsto pela CE para as contas portuguesas assenta numa conta com juros na ordem dos 2,2% do PIB por ano até ao final de 2025. Se algo muda, o perfil da consolidação pode guinar.
"A governabilidade é a principal incerteza", avisa o analista que segue Portugal na agência de ratings DBRS.
Javier Rouillet afirma que "mais do que as finanças públicas, o risco de curto prazo mais tangível é um eventual atraso na implementação das reformas e investimentos do Plano de Recuperação e Resiliência".
"Se o novo governo não conseguir aprovar legislação, pode aumentar a perspetiva de novas eleições ainda este ano ou no início do próximo”, diz o avaliador.