
Primeiro foi a Meta, depois a Apple: duas das principais gigantes tecnológicas pausaram a implementação das suas estratégias de inteligência artificial (IA) na Europa, devido a questões relacionadas com regulação e privacidade de dados. Se a tendência prosseguir, não deverão ser as únicas, até porque a União Europeia aprovou o AI Act, a primeira legislação abrangente sobre a aplicação da tecnologia. O que significa isto para as empresas e consumidores europeus? Haverá um oceano legal a separar a evolução da IA dos dois lados do Atlântico?
“Na prática, o que vamos ter são modelos desenvolvidos, treinados e implementados nos Estados Unidos e na Ásia com base num tipo de dados diferente daquilo que temos na Europa”, explicou ao Dinheiro Vivo João Martins, especialista em inteligência artificial que lidera a área de analítica e IA na Noesis. “A aplicação desses modelos e o tipo de informação que é disponibilizada vai ser garantidamente diferente, e aquilo que nós podemos fazer com os modelos vai ser diametralmente oposto”, afirmou.
Com a entrada em vigor do AI Act e implementação das diretivas, as empresas europeias devem “começar a preparar-se”, aconselhou o especialista.
“Nós na Europa temos uma abordagem mais baseada em risco. Qual é que é o impacto que tem aquilo que estamos a implementar para o cidadão, para organizações, para o ecossistema”, descreveu. A legislação é focada na proteção das pessoas e da sua privacidade, ao passo que nos Estados Unidos é mais sectorial e na Ásia é mais centralizado e estatal.
João Martins considera que este foco europeu é positivo e coloca as salvaguardas devidas em torno de uma tecnologia com poder extraordinário, em que erros e preconceitos invisíveis podem ter efeitos devastadores. “O modelo está treinado com um conjunto grande de dados e o maior número de dados é aquilo que vence na resposta, portanto, convém ter esse tipo de de salvaguardas”, frisou.
Embora a legislação ande sempre de forma mais lenta que a inovação, o AI Act está pronto e será totalmente aplicável 24 meses após a publicação, sendo que até ao final deste ano as práticas IA proibidas pela lei têm de ser retiradas do mercado. É por isso que tanto a Meta como a Apple estão a analisar como poderão implementar as suas estratégias no mercado europeu, dada a diferença substancial de regras que estarão em vigor. A Meta pausou a implementação do assistente Meta AI após um pedido do regulador irlandês e a Apple disse que não irá oferecer o Apple Intelligence aos consumidores europeus este ano devido a receios sobre a regulação.
Estas são questões que terão de ser resolvidas. “Acredito que, a médio prazo, vai existir uma convergência a nível legislativo”, ponderou João Martins, apontando para a dificuldade de resolver barreiras num mundo digital.
“Eu estou a trabalhar em Portugal, mas tenho os meus dados nos Estados Unidos ou noutra geografia. Qual é a legislação que está em cima da minha informação e dos meus dados?”, questionou. Por outro lado, a aceleração da inovação torna difícil manter as regras alinhadas com a evolução. “A velocidade com que estamos a criar ativos técnicos não se coaduna com algo mais lento que é a legislação que está a ser aplicada.”
Num tabuleiro tridimensional onde se movem a tecnologia, o negócio e a legislação, o especialista avisa que mexer numa peça vai ter impacto nas outras.
“É bom as pessoas terem este tipo de consciência”, salientou João Martins. “Quanto mais falarmos, mais eficiente será a utilização destes projetos a nível de negócio, e quando novos modelos forem implementados, pelo menos já existe essa atenção à privacidade, aos preconceitos, à confidencialidade dos dados”, continuou. “Na nossa ótica como organização, é sempre bom as pessoas fazerem perguntas, por que a pergunta significa curiosidade e a curiosidade é a mãe da inteligência artificial.”
O que devem fazer as empresas
O número de projetos envolvendo IA - e sobretudo IA generativa - não tem parado de aumentar nos últimos dezoito meses, mas ainda há empresas na Europa que estão a esperar para ver como estas diferenças se vão assomar. É algo que não faz muito sentido, indicou João Martins.
“Avançar ou não avançar não é questão, porque obrigatoriamente vão ter de avançar para terem a capacidade de concorrer com empresas lá fora e com um mercado cada vez mais globalizado”, avisou. O especialista da Noesis dá o exemplo de uma loja online que implementa um bot de conversação para auxiliar o consumidor na pesquisa de um produto e uma que não o faz, obrigando o cliente a pesquisar entre centenas ou milhares de referências. “Se a empresa A não avançar tão rapidamente como a empresa B vai ficar para trás, porque eu vou ter uma melhor experiência de compra”, resumiu. No entanto, será preciso avançar com cuidado e evitar estratégias que pretendem fazer tudo ao mesmo tempo na empresa.
“O conselho é começar pequeno”, indicou. “Escolhemos uma determinada área de atuação e vamos validando quer metodologia, quer tecnologia, quer utilização por parte das pessoas”, afirmou. “E também garantir que as pessoas quando utilizam IA generativa estão a obter respostas que lhe fazem sentido e que estão corretas.”
A ideia é começar por uma implementação controlada, trabalhando os sistemas de ética e a governação do acesso à informação. “O conselho é implementar com calma, com organização, com metodologia e com governança da informação que está a ser utilizada.” As empresas devem também incluir o departamento legal para monitorizar o que está a ser feito.
“Se tivermos uma análise no futuro daquilo que foi montado com inteligência artificial, se a equipa legal não souber vai-se sentir descalça, vai ter de andar para tentar perceber quem é que montou, quem é que fez, quando é que fez”, salientou João Martins.
O especialista também avisou que é mais difícil, nestes casos, estabelecer parâmetros concretos de retorno do investimento e torná-lo mensurável. “É uma mudança de mentalidade”, considerou. “É uma mudança de paradigma.”