
Sendo inevitável que muitos jovens queiram ter experiências de formação ou de trabalho no estrangeiro, Inês Lynce considera que “temos de criar condições para que seja temporário e não permanente ou irreversível”. A professora no departamento de Engenharia Informática do Instituto Superior Técnico e investigadora que preside ao INESC-ID, e que já antes foi a primeira mulher à frente do programa da Carnegie Mellon em Portugal, alerta para o desequilíbrio salarial no primeiro emprego em Portugal face ao que se pratica lá fora. Este, na sua opinião, é um grande entrave à fixação de talento qualificado. Especialista em inteligência artificial, Inês Lynce considera ainda que todos deveríamos ter "formação ao longo da vida para estarmos, por um lado, a par da tecnologia, por outro, a par dos perigos que a tecnologia coloca".
Sendo a primeira mulher presidente do INESC-ID e já antes foi a primeira mulher à frente do programa da Carnegie Mellon em Portugal, quais são os grandes desafios na promoção da igualdade de género no setor tecnológico?
Tudo o que seja promoção de igualdade, seja de género, seja do que for, é um desafio na sociedade. Neste caso, é uma preocupação nesta área, pelo menos no mundo ocidental como nós o conhecemos, de promover tudo o que é tecnologia e aquilo que é o pensamento computacional desde crianças e jovens, e depois de mostrar como isto é uma oportunidade no mundo do trabalho. Depois, há uma segunda fase, e a apresentação que fez sobre mim vai nesse sentido, de colocar as mulheres em lugares cimeiros que se possa perceber que têm as mesmas oportunidades. O que não é igual em todas as áreas, há áreas em que isso não é sequer uma questão, porque frequentemente vemos, tanto os homens como as mulheres em lugares cimeiros. Ou então, até há situações em que é o inverso. Só para termos a noção, por exemplo, posso dizer que há universidades na Holanda onde abrem posições em que um dos requisitos é para mulheres nas universidades.
Concorda com isso?
Eu acho que é discutível. A argumentação usada é que existe claramente um fator de desigualdade e que, com iniciativas destas, se corrige mais depressa. E isso é factual. Depois, a questão é qual é o impacto que isto tem a médio e longo prazo? E aí eu acho que já é discutível. Eu estava a dar o exemplo da Holanda, mas sei que na Irlanda abrem lugares para mulheres, mas só lugares de topo. O que seria mais natural é dar condições e perceber como é que nós conseguimos atrair mulheres e fazer um esforço nesse sentido e declarado. Por exemplo, Carnegie Mellon é um dos exemplos de referência onde conseguiram, no próprio curso de Informática, ter paridade.
Como é que conseguiram?
Foi muito além das iniciativas de ir às escolas: foi criar um ambiente para as raparigas dentro do curso, que as empoderasse de alguma maneira e que elas sentissem que, mesmo em minoria, tinham apoio.
Com a diversidade todos ganham, não é?
Seja no ambiente de trabalho, seja numa determinada profissão, é preciso perceber que o que vem dessa diversidade é mais do que somar as partes. Aí é que se dão os saltos, que, no fundo, é aquilo que se pretende na tecnologia.
Quando olha para esta nova geração, que é a mais qualificada de sempre e tem necessidade de emigrar, como é que vê o mercado de trabalho?
A necessidade de emigrar pode ser vista de duas maneiras. Uma é a necessidade porque não há emprego, e nestas áreas há pleno emprego. Outra é a necessidade pelo desafio. E o que acontece atualmente é que há muito mais acesso à informação para alguém que queira estudar fora. Ficou muito mais global, digamos assim, a base de recrutamento. O que acontece atualmente nos jovens é que já está na cabeça deles ir para fora. Eles irão estudar para fora. O programa Erasmus é mesmo isso. Atualmente é rotineiro. Portanto, na cabeça deles está a necessidade de ir estudar para fora, ou trabalhar para fora. O que temos que fazer é criar condições para que seja temporário e não permanente ou irreversível.
E há aqueles que fazem o mestrado cá, mas depois querem ir trabalhar para fora.
Aí há um aspeto que também cabe aos empregadores, mudar o chip: que é, em posições mais altas, muitas vezes os nossos salários são competitivos, ainda que sejam mais baixos [do que no estrangeiro]. Em relação ao primeiro emprego, há uma diferença brutal. É uma questão de tempo, até todos sofremos com isso.
O problema está também no acesso ao primeiro emprego?
Sobretudo no acesso ao primeiro emprego. Há uma mentalidade, quase de antigamente, em que no primeiro emprego não sabemos se a pessoa vai ficar, se não vai. Quando a mentalidade tem que ser ao contrário, que estas pessoas foram expostas a algo muito mais complexo do que aquilo que foi a nossa formação. E não é só isso. A criatividade é a chave da inovação. E há uma criatividade que vem da juventude. Tão simples como as maiores contribuições matemáticas foram feitas por pessoas muito jovens. E mesmo as tecnológicas, muitos deles [dos fundadores] eram alunos que estavam a fazer o doutoramento e criaram a sua empresa. Há uma criatividade que vem da juventude, que é preciso proteger e potenciar. Se a diferença é pagar o primeiro emprego com um salário mais competitivo, para reter cá as pessoas, isso tem que ser.
O que é que falta?
Contra factos não há argumentos, pagar mais tem um custo. Tem que haver esta noção que não é só uma questão de quantidade. Ou seja, não estamos a contratar pessoas para fazer qualquer coisa mecânica – quantos mais, maior é o resultado. Estamos a recrutar pessoas qualificadas e que podem dar um contributo único dentro de uma organização, obviamente. Se houver boas contratações, nós podemos dizer que é um investimento válido. Até podemos dizer que, se os mais bem qualificados vão embora, eu vou ter que contratar os menos qualificados e se calhar vou precisar de dois em vez de um. Tem que haver aqui o benefício da dúvida e perceber que nós, perante os países europeus, e não vamos tão longe, perante Espanha, perante França, não estamos a ser competitivos para reter os alunos.
Por exemplo, uma parceria como a da Carnegie Mellon não os aproxima mais de serem "assediados" para ir lá para fora?
Isso é o eterno dilema. Isso é como dizer aos alunos, não podem usar o chatGPT. Eu já desisti disso. Eu digo sempre, podem usar, mas vocês são os responsáveis no final. Portanto, não é cortando as asas que se resolve a educação. Claro que há limites a impor em função das idades. Mas aqui, no fundo, é dar uma experiência que seja diferente com a expectativa do retorno e por verem realidades que são diferentes. Ir a universidades ou institutos diferentes do nosso ajuda-nos a perceber que há muitas maneiras de pôr as coisas a funcionar. Caso contrário, nós achamos que só há uma maneira porque é aquela que nós vimos. É a realidade que nós conhecemos.
Perante a escassez do mercado de trabalho para muitas das profissões tecnológicas, acha que há também aqui uma falha no sistema educativo?
Nós funcionamos com os números clausus, a nível das universidades. Mas se formos realistas, conseguimos perceber que nem todos os cursos ligados às tecnologias enchem. E claro que nós podemos dizer que aos mais procurados vamos aumentar o número de vagas. Não é sustentável. Um dos problemas do nosso ensino atualmente é o ensino de massas. Podemos aqui tentar que certas coisas escalem, mas haverá sempre aquela ligação de um para um.
Mas qual é o valor no mercado da formação não universitária?
Atualmente, dá-se muito mais valor, muito mais. O acesso ao ensino superior é feito pelas notas. Portanto, nós temos ali que trocar a forma de pensar dos alunos. Atualmente, há muitos alunos que não são necessariamente aqueles das médias mais elevadas no curso, que têm muito mais sucesso. Porquê? Por causa de ter uma formação completa. Eu recomendo sempre aos alunos: o CV não é apenas o título académico, mas é a experiência profissional que pode ir desde, por exemplo, projetos que existem a nível académico, que, por exemplo, no Técnico vem desde a construção de satélites, a construção do Formula Student, que é um carro de competição. São projetos com as mãos na massa, e isso é importantíssimo. Essa experiência à volta da academia, mas que não é académica no sentido de ter um diploma, é importantíssima, tal como, por exemplo, eu valorizo muito os alunos que praticam desporto federado, e sabermos como é importante compaginar isso. Mas é corpo são, mente sã, é a mensagem.
Como é que vê, nos dias de hoje, a relação entre a academia e a indústria, no que diz respeito à inovação tecnológica?
Existe uma colaboração muito mais estreita, atualmente. Por um lado, existe a necessidade, dada a escassez, também da indústria, de ir buscar os talentos à universidade. Por outro lado, nós estamos a falar de uma área que é muito privilegiada, a informática e tecnologias. Atualmente, os nossos alunos de doutoramento podem ficar alguns na academia, mas os outros vão para a indústria. A preocupação é dizer não, têm que ir para um local onde sejam valorizados pelo facto de ter doutoramento. Não é como se tivessem acabado de cumprir a sua licenciatura. Significa que não é o lugar certo para irem, porque não estão a ser valorizados. Mas isso é o que acontece atualmente.
Como é que avalia o estado atual da investigação em Portugal e o que é que pode ser feito para incentivar mais esta inovação?
O calcanhar de aquiles da investigação em Portugal é a falta de previsibilidade do financiamento. Isso é um aspeto que, em alguns pontos, tem sido ultrapassado. Por exemplo, existe sempre a expectativa de todos os anos haver bolsas de doutoramento. Em relação ao financiamento para projetos científicos, existe claramente ainda muita imprevisibilidade. Isso é um aspeto que acaba por ser muito disruptivo na investigação, de conseguir manter com consistência uma linha de investigação quando sabemos que a certa altura pode não haver dinheiro.
E as empresas aí podem ter um papel como financiadores?
As empresas têm esse papel como financiadores. Qual é a diferença? As empresas têm uma janela de visão muito mais curta do que tem a investigação na universidade: não se podem comprometer por 4, 5 anos facilmente. E nós, quando pensamos num projeto de investigação, sobretudo se tiver mais investigação fundamental, precisamos desse tempo. Um doutoramento precisa desse tempo. Mas também no lado das empresas há alguma imprevisibilidade porque estão sujeitas, de um momento para o outro, a um lay-off, por exemplo, ou podem ter que mudar uma orientação.
Hoje, porque a inteligência artificial é indissociável de toda a nossa vida, como vê o papel da IA no futuro da investigação científica?
Vejo, por um lado, como algo que vai estar por todos os lados, ou seja, da mesma forma que a matemática, digamos assim, é uma base forte da engenharia, por exemplo, a inteligência artificial, naquilo que chamamos na informática as ciências da computação, vai ser uma base para tudo isso, tal como nas outras ciências que nós consideramos fundamentais.
Quais são os cuidados que se deve ter em relação à IA?
A educação combate muita coisa. Portanto, o investimento na educação é sempre um bom princípio.
É a tal palavra literacia ou não?
É a literacia, mas a literacia num sentido muito alargado, no sentido de educarmos as crianças, de educarmos os educadores para saberem como é que se faz o uso responsável dessas ferramentas e como é que podemos ensinar os mais jovens a usá-las, tendo todas as precauções que têm que ter, de forma responsável e atenta. Claro que, enfim, como em tudo, quando são camadas mais jovens, a supervisão é o que faz sentido. Por outro lado, não é só camadas mais jovens, somos nós próprios, há aqui uma formação ao longo da vida para estarmos, por um lado, a par da tecnologia, por outro, a par dos perigos que a tecnologia coloca.
Quais são os grandes desafios que o INESC-ID irá enfrentar no próximo ano?
Para nós o desafio é fazer sempre investigação e de caráter excelente, no sentido do impacto e do reconhecimento que isso tem, que pode ser impacto se for investigação mais fundamental. É impacto imediatamente científico ou então é impacto na sociedade. Aqui há um aspeto também muito importante, pelo facto de toda esta área ter uma importância tão grande atualmente, que é dar-nos uma responsabilidade social muito acrescida. Isso significa que toda a parte de comunicação daquilo que fazemos tem uma importância crescente e os investigadores por natureza, então nesta área, não foram talhados para isto. E é um esforço.
É um esforço para comunicarem?
Estão talhados para comunicar no seu artigo científico, mas estamos a falar de uma comunicação diferente e isso é uma das apostas que existe atualmente e que está muito clara. Nas próprias fontes financiadoras, nos projetos europeus, por exemplo, há toda uma parte dedicada ao impacto a nível da sociedade, a nível científico, e que é preciso desenvolver. E um outro aspeto que vem da responsabilidade, que é na investigação aquilo a que se chama transferência de tecnologia. Ou seja, não é apenas investigar, é conseguir comunicar e conseguir tornar acessível a quem queira produtizar, digamos assim, aquilo que é feito em investigação. Para isso, também tem de se mudar a forma de pensar e é preciso haver também quem entenda do assunto e a comunicar para os stakeholders.
E daí a necessidade que haja doutorados dentro das empresas para que eles entendam o que a academia e a investigação estão a produzir e como é que isso depois pode ter um efeito direto naquilo que é o desenvolvimento destes negócios.
Isso mesmo.