José Luís Sequeira: "as empresas vêm resistindo financeiramente, mas até quando?"

Portugal é o maior produtor da Europa de loiça doméstica e a indústria da cerâmica e cristalaria quer afirmar-se ainda mais no panorama internacional. A associação do setor vai investir quase um milhão de euros, com fundos europeus, para "refrescar" a imagem e comunicação das marcas nacionais no exterior, explica José Luís Sequeira, presidente da APICER.
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APICER - Associação Portuguesa das Indústrias de Cerâmica e Cristalaria apresentou este mês o programa INTERCER, que "visa mudar a perceção que os mercados têm da cerâmica portuguesa, nomeadamente dos subsetores da cerâmica utilitária e decorativa e pavimentos e revestimentos cerâmicos", explica José Luís Sequeira, presidente da APICER, em entrevista ao Dinheiro Vivo.

A indústria da cerâmica e da cristalaria exportou 662 milhões de euros no ano passado, uma redução de 6,4% face a 2019, por causa dos efeitos da pandemia. No entanto, sublinha José Luís Sequeira, "a cerâmica portuguesa continua a destacar-se pela sua contribuição positiva para a balança comercial portuguesa (474,5 milhões de euros em 2020), atingindo uma taxa de cobertura das importações pelas exportações que ascendeu a 352,7%".

Mas mais do que a pandemia, há dificuldades estruturais que afetam o setor, e o presidente da APICER sugere que se "aliviem as pressões excessivas quer na burocracia, quer nos preços da energia, quer na sufocante carga fiscal que temos".

Como é que a cerâmica portuguesa é vista lá fora?

A cerâmica portuguesa tem uma imagem muito positiva no mercado internacional, imagem que foi sendo construída ao longo do tempo, sobretudo por via da participação das empresas nas grandes feiras internacionais destinadas às fileiras da construção, da casa e da decoração, nas quais marcamos presença física bem visível pelo número de empresas portuguesas que ali expõem os seus produtos.

A nossa cerâmica é de facto muito rica, não só porque tem características muito marcantes traduzidas na enorme variedade de cores, dimensões e formas mais ou menos arrojadas, como ainda porque a isso corresponde uma criatividade e um saber fazer muito singulares na Europa e até no mundo.

Soubemos ainda, e ao longo do tempo, associar a nossa tradicional gastronomia à típica mesa portuguesa, pelo que nem cá dentro nem lá fora se torna possível dissociar uma coisa da outra. Temos vindo a acrescentar inovação à tradição, com resultados de que nos orgulhamos, nomeadamente por sermos o maior produtor europeu de louça doméstica, e termos respostas adequadas ao requinte, ao design e à funcionalidade dos materiais cerâmicos para pavimentos, revestimentos e até coberturas cerâmicas, sejam mais ou menos exigentes os requisitos da arquitetura.

Vão fazer um grande esforço para promover as marcas nacionais no exterior. Quais são os mercados que vão privilegiar?

Sim, vamos fazer um grande esforço para promover as marcas nacionais da cerâmica portuguesa, mas é um esforço condicente com a necessidade de refrescar a imagem e a comunicação do setor nos mercados internacionais, nos quais temos que assumir a nossa identidade como setor industrial, cientes de que ao fazê-lo estamos a cumprir uma regra de ouro nos nossos dias: é que o que não se fala não se vende, pelo menos ao preço possível e desejável, por falta ou por deficiente comunicação. E neste aspeto, é importante modernizar/atualizar a relação com o mercado, para não nos deslumbrarmos apenas com a tradição. É essencial renovar-lhe os pergaminhos com o design moderno que se cultiva, o compromisso da sustentabilidade que se exige e a inovação tecnológica que se valoriza. No âmbito do projeto INTERCER - Promoção da Internacionalização da Cerâmica Portuguesa, que tem por objetivo reforçar a notoriedade e competitividade da cerâmica portuguesa, os mercados alvo são, para o subsetor da cerâmica utilitária e decorativa, os Estados Unidos, Alemanha, França e Itália e, para o subsetor dos pavimentos e revestimentos cerâmicos, os Estados Unidos Alemanha e França.

Dos vários segmentos do vosso setor, qual ou quais são aqueles que considera terem mais potencial de internacionalização?

À partida, todos os produtos de cerâmica portuguesa têm potencial de internacionalização, embora os produtos da cerâmica utilitária e decorativa ofereçam menor resistência ao transporte a longas distâncias, o que em termos de internacionalização para o mercado europeu, tem de facto alguma relevância. Por outro lado e para os produtos da construção, sendo o mercado europeu tão importante como é, obriga-nos no entanto a custos acrescidos de logística na distribuição, porque temos de chegar onde já estão os nossos concorrentes. Acresce o facto de se tratar de materiais de construção relativamente pesados, o que penaliza ainda mais a sua distribuição.

Como tem evoluído a internacionalização destas empresas?

A internacionalização das empresas é e será cada vez mais uma inevitabilidade, dado o crescimento do setor e o aumento da dimensão das empresas, para as quais são estreitos os caminhos permitidos pela dimensão geográfica do país. Daí que se vão adquirindo empresas na China, nos EUA ou na América Latina. Iremos crescendo com o tempo, sem precisarmos que nos empurrem, mas também desde que não nos cortem a passada e nos aliviem as pressões excessivas quer na burocracia, quer nos preços da energia, quer na sufocante carga fiscal que temos.

Quanto vão investir no programa INTERCER? Como vai ser financiado o programa?

O projeto INTERCER foi aprovado com um investimento elegível de 930.978,93 € e é cofinanciado pelo FEDER no âmbito do COMPETE 2020 - Programa Operacional Competitividade Internacionalização, com um apoio de 791.332,09 euros. É um apoio sem o qual seria impossível a concretização deste projeto, ainda que dele resultem compromissos financeiros que nos caberá suportar enquanto promotores da iniciativa.

Vão criar uma marca chapéu para esta indústria? Quando serão lançadas as primeiras ações?

A marca enquanto tal já existe como Cerâmica Portuguesa, pelo que agora o que é importante é preenchê-la de conteúdos que seduzam, e comunicá-la com intensidade e com o rigor que se exige a um projeto de dimensão e interesse setorial como este. O seminário de apresentação do projeto INTERCER teve lugar no passado dia 11 de março e irá decorrer até 23 de dezembro de 2022. A primeira ação aconteceu por isso no passado dia 11, e damos muito valor a esta primeira ação porque, com o registo superior a 130 inscrições, garantimos desde logo o primeiro objetivo de envolvimento do setor, no pressuposto de que só conseguiremos manter e garantir uma identidade lá fora, se a ganharmos cá dentro. De resto, o que podemos sublinhar no INTERCER e que constitui por isso a sua marca de água, é o facto de ter sido proposto pelos empresários que nele colaboraram nas suas várias etapas, desde a candidatura até à sua conclusão em finais de 2023.

Que resultados esperam do INTERCER e em quanto tempo?

Este projeto visa mudar a perceção que os mercados têm da cerâmica portuguesa, nomeadamente dos subsetores da cerâmica utilitária e decorativa e pavimentos e revestimentos cerâmicos. Para tal, pretende definir e comunicar um novo posicionamento para a "cerâmica made in Portugal", por forma a melhorar a competitividade da cerâmica portuguesa e, consequentemente, o aumento das exportações, em alinhamento com a AICEP. Estes são os resultados que esperamos e, quanto ao tempo, queremos que este seja o INTERCER 1, ao qual se deverão seguir o INTERCER 2 e 3. Isto porque mudar ou esquecer a nossa identidade ao fim de dois anos, é sinal de que não a conseguimos consolidar. Assim o setor o queira e os empresários nos acompanhem.

Como é que as empresas portuguesas comparam com o que se faz lá fora?

A pergunta faz todo o sentido e tem todo o cabimento, mas pode ser colocada também em sentido inverso, perguntando às empresas lá fora como é que se comparam com as empresas portuguesas. Há de facto diferenças na dimensão que por vezes e para alguns produtos, é um fator determinante. Porém e noutros produtos e nomeadamente dentro do subsetor de cerâmica decorativa, há uma dimensão própria que não se compadece com os ganhos de escala. Temos que nos comparar para não corrermos o risco de cair em arrogância, mas não temos que viver com a ansiedade de ter o que os outros têm.

Com que países concorre Portugal?

A produção de cerâmica é dominada a nível mundial pela China. No contexto da União Europeia, os nossos principais concorrentes são a Espanha, Itália e Alemanha.

Como retrata as empresas do setor nesta altura em termos de solidez financeira?

Neste momento a única afirmação que podemos fazer é que as empresas vêm resistindo financeiramente. A dificuldade estará na resposta de... até quando?

Esta indústria reinventou-se depois das grandes dificuldades por que passou? O que mudou?

Direi que não mudou tudo, mas mudou muita coisa, sobretudo porque foi sendo necessário apertar critérios de eficiência à medida que as questões ambientais se foram tornando mais exigentes; foi sendo necessário melhorar os níveis de qualificação profissional e acrescentar mais gestão nos compromissos com a sustentabilidade económica, social e ambiental; mudaram as matérias-primas na sua composição, os produtos e o design; mudou a tecnologia e por fim mudaram ainda os próprios mercados por influência de fatores políticos, económicos e sociais. Mas apesar do que mudou e isso foi o que já aconteceu, a preocupação agora é com o que virá a acontecer com todas as incertezas que vivemos, mas com a certeza de que não poderemos escapar aos desafios da digitalização, da descarbonização. e da responsabilidade social. Mudar estratégias? Mudar táticas? Se calhar sim, mas esse é o grande desafio da gestão.

O setor está a inovar?

A inovação na cerâmica tem, pelo menos aparentemente, dois fatores que são imutáveis e que resultam por um lado das matérias-primas em que a argila é dominante, e por outro lado do processo de transformação química dessas argilas, de modo a que os produtos continuem a ser de cerâmica. Tudo o resto tem sido objeto de inovação quer nos processos, quer nos produtos e na gestão. A inovação poderá dizer-se que vem acontecendo em relação a muito do que se vê e a muito do que se não vê. Muito do que se vê está relacionado por exemplo nos pavimentos e revestimentos, com as dimensões das peças fabricadas, com a sua espessura e com a sua decoração, que significam saltos tecnológicos enormes; melhorar o isolamento térmico e acústico dos materiais, bem como prolongar-lhes o ciclo de vida e permitir-lhes melhor acesso à economia circular, são processos complexos e muito exigentes em I&D; aumentar a resistência dos materiais, sejam de construção ou de casa e decoração, e trabalhar o seu design para estar na moda e poder adaptar-se aos hábitos de vida e a uma nova vida em sociedade, tudo isto são passos de gigante em termos de inovação. Por outro lado e muito do que não se vê, está no cumprimento das metas ambientais, nas medidas de eficiência energética ou de poupança de matérias primas, nas exigências com o ambiente de trabalho ou com a saúde, sobretudo quando se trata de produtos que estarão em contacto com alimentos, enfim, tudo o que se vê e não vê, tem muito trabalho de investigação do nosso Centro Tecnológico, deste com Universidades, e destas e dos Centros Tecnológicos europeus entre si.

Qual o impacto no setor da retração económica provocada pela pandemia?

Num ano marcado pela pandemia do covid-19 e pela adoção de medidas de forte restrição à atividade económica e social, com impacto profundo na generalidade das economias mundiais, o desempenho das nossas exportações de cerâmica em 2020 foi, ainda assim, menos desfavorável do que o verificado para o conjunto das exportações nacionais de bens, em que a variação registada foi de -10,2%. De acordo com os dados preliminares divulgados pelo INE, no ano de 2020 as exportações portuguesas de produtos cerâmicos ascenderam a 662.259.265 euros, o que representa uma variação de -6,4% face ao ano de 2019. A cerâmica portuguesa continua a destacar-se pela sua contribuição positiva para a balança comercial portuguesa (474,5 milhões de euros em 2020), atingindo uma taxa de cobertura das importações pelas exportações que ascendeu a 352,7%. No ano de 2020 as nossas exportações de produtos cerâmicos chegaram a 160 mercados internacionais.

Qual a importância do mercado interno para este setor? Vinha a evoluir favoravelmente nos últimos anos?

Para o conjunto de produtos cerâmicos, e em termos médios, o mercado interno representa cerca de 40% do volume de negócios das empresas. No que diz respeito aos produtos cerâmicos destinados ao mercado da construção, nomeadamente, tijolos e telhas, louça sanitária e pavimentos e revestimentos cerâmicos, o mercado interno vinha a evoluir favoravelmente ao longo dos últimos anos, em linha com o crescimento do setor da construção.

Qual o peso das exportações no volume de negócios?

Para o conjunto dos produtos cerâmicos, as exportações representam cerca de 60% do volume de negócios das empresas, sendo que esse peso é consideravelmente superior no caso da cerâmica utilitária e decorativa. As exportações de produtos cerâmicos ascenderam a 707.743.607 euros e 662.259.265 euros, respetivamente, em 2019 e 2020. No ano de 2020 os nossos principais mercados internacionais foram a França, Espanha, Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido que, no seu conjunto representaram 64,1% do valor total das nossas exportações de produtos cerâmicos.

Como vê o futuro desta indústria?

Quanto ao futuro, os indicadores que tínhamos antes da pandemia pela auscultação que fizemos aos associados, eram de confiança alta ou moderada. Com a pandemia, e se bem que não tenhamos hoje sinais muito evidentes de desalento, reconhecemos que há mais dúvidas porque há mais fatores de risco, há menos ambição porque há menos confiança, e há mais incertezas que não ajudam à mobilização que seria desejável. Há sempre os mais otimistas e os mais pessimistas, mas estamos em crer que resolvida a questão sanitária, acertaremos contas com a recuperação económica.

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