João Moreira Rato: Temos de ter mecanismos que protejam os subordinados dos líderes”

O código de práticas do governo societário continua a assustar muitas empresas – sobretudo as mais pequenas – que temem ficar aquém dos objetivos estipulados. Ao Dinheiro Vivo, o presidente do IPCG fala da necessidade de desmistificar conceitos, de chamar o Setor Empresarial do Estado à responsabilidade e da importância da Corporate Governance na proteção dos trabalhadores. Uma conversa sobre boas-práticas nas empresas, no rescaldo de dois casos que têm estado na agenda mediática.
João Moreira Rato, presidente do Instituto de Corporate Goverrnance
João Moreira Rato, presidente do Instituto de Corporate GoverrnanceD.R.
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Quais são os principais desafios de Corporate Governance para 2025?

Os grandes desafios, e são dois, já vêm de trás, mas acredito que se vão manter: um deles é disseminar e implementar as recomendações no Setor Empresarial do Estado (SEE). É preciso alterar a Governance no SEE, porque é muito complicado estar a tentar puxar pelo setor privado e o Estado, no geral, comportar-se pior do que o privado. Não é um bom sinal. Portanto, é importante puxar pela Governance no SEE. E queremos também fazer com que a Governance chegue a cada vez mais empresas, o que significa simplificar a versão do atual código de práticas, para permitir às médias empresas terem acesso a um modelo que se adeque mais à sua dimensão. No fundo, queremos aproximar-nos mais do tecido empresarial português.

O nosso universo empresarial, muito constituído por PME, ainda tem dificuldade em entender isto da Corporate Governance? Há aqui algum receio à mistura?

Creio que temos, de alguma forma, de desmistificar a questão das dificuldades e complexidade da Governance. Que não é complexo. O processo começa muito simples, e a sua complexidade vai aumentando à medida da necessidade. Se quiser uma imagem simples, a ideia não é um tipo estar todo nu e, de repente, receber uma armadura [risos]. Ele vai-se vestindo à medida das necessidades. Só usa a armadura se precisar de combater num combate medieval. Aqui é o mesmo: o processo de Governance começa simples e vai-se densificando na mesma medida em que a empresa cresce e se complexifica. Há uns tempos dei um exemplo, no caso das empresas turísticas que precisam de ter uma abordagem de sustentabilidade: o primeiro passo é Governance. É perguntar: como vamos fazer isto? Fazemos nós? Trazemos um terceiro, que é especialista, e produzimos com ele um documento? Esse documento vai ter objetivos que vamos seguir? E como o vamos fazer? A resposta a todas estas questões é Governance. À medida que as empresas se vão formalizando, todas as respostas são Governance. Uma empresa que tenha duas pessoas e que queira ter 10, vai ter de alterar os processos. Como fazemos? Como se alteram? Como se passam a tomar decisões? Quer as pessoas queiram, quer não, a Governance existe!

E essa existência vai-se tornando mais óbvia à medida que se cresce…

Para a empresa crescer, a Governance vai ser muito necessária. E está intimamente ligada ao crescimento da economia e das empresas. A cada passo, tomando boas decisões de Governance, vão-se assumindo riscos. Mesmo nas empresas pequenas e médias - e é isso que tem de se tornar claro. Quando falamos da qualidade da relação com os clientes, com os fornecedores, com os trabalhadores, tudo isso vai depender de uma boa Governance. Que, repito, deve ser montada à medida das necessidades e para dar resposta à questão de como fazer o melhor para que a empresa continue, para que os fornecedores e clientes tenham tudo o que é necessário. No fundo, estamos a antecipar riscos.

Vamos tentar ser mais concretos: por que é que essa mensagem não está a chegar às PME?

Porque temos um código de Governo das Sociedades que está feito para empresas do PSI. Começámos top-down - porque tinha de ser assim. E agora que temos montado esse processo de monitorização, temos de fazer um esforço para simplificar o código, para refletir as empresas mais pequenas e médias. Se eu lhe tivesse dito, no início da sua carreira profissional, que conseguiria conduzir uma entrevista desta forma, ficava aterrada. O problema é que na Governance já estamos a mostrar o produto final de um processo gradual. E o risco que se corre é assustar as pessoas. Por isso, o esforço que temos de fazer, como IPCG, é o de ajudar as pessoas que estão a querer começar.

Acha que esta questão ainda assusta?

Acho que ainda assusta os pequenos e médios empresários. Veem o cumprimento do código como um objetivo muito ambicioso e têm medo de estar muito longe do objetivo final. E têm medo de assumir isso, também. É como se lhes estivéssemos a dizer que têm de correr uma maratona sem terem treinado para correr. Portanto, é preciso ajudá-los com passos mais pequenos. Nós tivemos, por exemplo, um projeto com o IAPMEI em que tentávamos ajudar as PME a identificar os principais riscos - imagine, perda de um grande cliente ou um grande fornecedor. Como acompanham os riscos? O que acontece se o risco se realizar? Todas estas questões são muito básicas, mas são, para qualquer empresa, questões de Governance. Por essa razão é que defendo que devemos ter um código simplificado, e esse código deve ser decomposto em módulos, dando às empresas uma forma de monitorização que não seja pública, e que lhes permita ter acesso um diagnóstico sobre o qual possam trabalhar. No fundo, é ter um código simplificado que possamos decompor em partes. Uma espécie de Lego, em que as empresas começam por trabalhar com uma peça, depois passam para outra... e vão construindo aos poucos, sem se assustarem com a dimensão, o edifício da Governance.

Voltemos ao início, e ao desafio do Setor Empresarial do Estado. Qual acha que é a principal dificuldade na implementação do código?

Vou ser muito direto nisto: o problema de base é o de tentação de influência política do Setor Empresarial do Estado. Em muitos casos, quando a questão se põe, o ministro da pasta quer controlar aquela empresa. Uma boa Governance não permite tão facilmente que um ministro controle o dia a dia de uma empresa pública, até porque não é esse o seu trabalho. Mas o receio principal desse responsável é perder controlo político.

Como se pode lutar contra isso?

A forma de se conseguir contrariar essa tendência é através de pressão do Parlamento e da opinião pública. Uma das vantagens de ter um Parlamento fragmentado, como temos atualmente, é que ele poderia estar com mais capacidade de monitorizar o que se passa. Mas é importante que a opinião pública tenha noção de que se tomam opções que não são precipitadas. Se, por razões de decisão política se põe em causa a utilização correta do dinheiro dos contribuintes, estes têm de entender que uma boa Governance existe para os proteger a eles e aos seus interesses. E ao dinheiro. E acredito que a comunicação social tem, nisto, desempenhado um bom papel. Porque sempre que acontece um caso, os media têm telefonado ao IPCG a perguntar sobre o papel da Governance. Em casos como o da TAP, mas também em casos como o da INAPA, fomos chamados a falar publicamente. E esse é um bom instinto, porque significa que começa a haver mais sensibilidade para este tema, por parte dos media e, logo, da opinião pública. É preciso que os utilizadores entendam que a tomada de decisão numa empresa é feita de uma forma sólida, consciente, que segue processos - como o caso dos barcos da Soflusa, por exemplo. E tudo isto depende de uma boa Governance. Que não deve ficar esquecida por causa da tática política, no caso do Setor Empresarial do Estado.

Mas essa independência ainda é muito questionada.

Por isso é que isto tem de ser trabalhado. Para acabar com uma falta de respeito que possa existir pela análise técnica e independente no SEE. É importante preservar a autonomia da gestão das empresas públicas. Tudo começa, de alguma forma, nas nomeações, naturalmente, mas também tem de se respeitar a autonomia da gestão, depois. Porque os acionistas, numa empresa privada, não gerem a empresa. Quem gere é a gestão. E os acionistas verificam se a estratégia está ou não a ser cumprida. Mas não vão lá todos os dias gerir a empresa. E aqui põe-se a mesma questão: os ministros da tutela têm de respeitar a autonomia da gestão e o processo das nomeações tem de ser independente.

Voltamos ao privado e ao PSI: não podemos deixar de falar no mais recente caso que envolveu a Galp, e que culminou com a resignação do seu CEO, Filipe Silva. É um caso claro da Governance a funcionar?

O que eu acho que se torna muito claro é que o processo de whistleblowing, de denúncia, tem evoluído. Nós temos, no Código de Governo de Sociedade, duas recomendações que se aplicam a este caso em concreto: uma das recomendações diz direito ao whistleblowing e a outra tem que ver com conflito de interesses. Recentemente, a Universidade Católica do Porto comparou o código de ética do PSI com o utilizado pelo FTSE (o índice bolsista inglês) e, em termos de mecanismos, nós comparamos bem. Onde comparamos pior é no que esperar depois da denúncia. Mas existir o mecanismo é muito importante, porque é uma forma de, dentro da empresa, se poder de alguma maneira descentralizar o poder e destruir comportamentos de bullying, de assédio. Nós, ainda por cima, que somos uma sociedade que foi ultra autoritária, temos de ter mecanismos que protejam os subordinados dos líderes. E daí a importância destas denúncias existirem, e de serem anónimas. Mas é importante, também, que quem denuncia perceba perfeitamente o que se passa após fazer a denúncia.

Então funcionou?

O que mostra aqui, o caso da Galp, é que o mecanismo funcionou. Pode criticar-se o vazamento da informação para a imprensa, é certo. Mas o mecanismo está lá para proteger conflitos de interesse. Isto são casos que vão sempre acontecer, porque fazem parte da natureza humana - vai sempre haver relações amorosas em locais de trabalho. Mas o que tem de acontecer é perceber-se como se protege a empresa dos potenciais conflitos de interesse que estes possam provocar. Porque este comportamento pode criar enviesamentos dentro da organização. E o mecanismo está feito para proteger os empregados dessas potenciais injustiças e para proteger os trabalhadores de abusos de autoridade. Andar a discutir teorias da conspiração - como tem acontecido, também, no caso da Galp - é fugir ao assunto. Até porque essas teorias servem para destruir mecanismos que são cruciais para proteger a empresa e os trabalhadores, e que são essenciais para proteger os mais fracos. E o que não deixa de ser curioso é que pessoas que se mostram sempre muito preocupadas com as questões de assédio nas empresas, ponham em causa estes processos.

Vamos a uma espécie de futurologia: se os desafios de 2025 fossem todos cumpridos, o que é que gostava de ver a funcionar na Governance em 2026?

Gostava que estivéssemos a trabalhar, para além dos códigos, questões culturais: de que forma a Corporate Governance se torna cada vez mais uma crença e não uma questão de pressão social. Gostava mesmo de garantir que isto estava incorporado na forma como as pessoas operam nas empresas. É como neste caso de denúncia de que falávamos: gostava que estes comportamentos estivessem normalizados.

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