Os sindicatos e os empregadores devem garantir que os salários negociados para 2023 não acompanham a inflação deste ano de modo a evitar os chamados "efeitos de segunda ordem" sobre os preços, pede a presidente do Banco Central Europeu (BCE).
Dias antes, o governador do Banco de Portugal (BdP) lançou um aviso equivalente, mas para o caso português: sinalizou que aumentos superiores a 2% podem gerar espirais indesejadas na inflação e que, portanto, é melhor não ir por esse caminho.
Numa audiência no Parlamento Europeu que decorreu na semana passada, Christine Lagarde lançou um repto que, atualmente, tendo em conta os níveis históricos da inflação na zona euro e na esmagadora maioria dos países, vem com peso acrescido e soa muito mais crítico do que nas crises do passado recente.
Em maio, a inflação da zona euro superou os 8%, em Portugal, idem. Para o conjunto do ano 2022, o BCE prevê que os preços médios do consumidor na zona euro possam chegar a 6,8%, muito acima da meta de médio prazo de 2%.
O aviso de Lagarde aconteceu cinco dias após Mário Centeno também ter aflorado o problema no caso português na apresentação do boletim económico.
O Banco de Portugal prevê agora uma inflação de 5,9% (cenário de base, em que a crise não se agrava) em 2022. Em março, tinha a guerra da Rússia contra a Ucrânia acabado de começar, a projeção era de 4%.
As recomendações de política salarial dos dois banqueiros centrais vão no mesmo sentido. Há que fazer tudo para aceitar compressões salariais em 2023 (compressões significativas, tendo em conta os níveis muito exacerbados de inflação antecipados para este ano) de modo a não alimentar a inflação daqui em diante.
Em Portugal, a maioria dos sindicatos e dos cidadãos não está nada recetiva a esse repto.
A função pública foi brindada com uma atualização de apenas 0,9% (decidida em outubro), o desagrado é grande. No setor privado, prevalecem largas camadas de trabalhadores pobres, apesar dos aumentos do salário mínimo. E muita precariedade.
Isabel Camarinha, secretária-geral da CGTP, a maior estrutura sindical nacional, promete resistir contra o discurso da contenção.
"A luta continua" e haverá "uma grande manifestação nacional em Lisboa a 7 de julho pelo aumento dos salários e das pensões, numa altura em que o custo de vida aumenta devido à escalada da inflação", disse a representante dos trabalhadores, citada pela Lusa.
De facto, o aumento do custo de vida disparou com a cavalgada nos preços da energia (que afeta diretamente consumidores finais e empresas) e de muitos bens alimentares básicos. Ao ponto de o governo ter sido obrigado a subsidiar os combustíveis em geral e os cabazes alimentares dos mais carenciados.
Mas para os bancos centrais da zona euro, aumentar salários além do nível de segurança (no caso da zona euro são os tais 2%) é problemático porque empurra o BCE para aumentos ainda mais pronunciados das taxas de juro, uma forma de arrefecer a economia.
Tal como no passado, este procedimento tem problemas ou riscos associados. Se a dose for grande, a economia pode não aguentar, acabando por entrar em estagnação ou mesmo recessão.
Lagarde avisa
O BCE perorou, também na semana que passou, sobre esse risco. Diz que "ainda estamos longe", mas esse tipo de crise (estagflação) é um cenário que já não se pode ignorar.
Para Lagarde, disse no Parlamento Europeu, "se for muito claro, como deve ser, que o BCE está determinado a cumprir o seu mandato - estabilidade de preços, inflação a médio prazo de 2% - então obviamente, nas negociações salariais, por exemplo, entre empregadores e trabalhadores, através de sindicatos e outras estruturas similares, as expectativas é que, pelo menos em 2024 e possivelmente descendo durante 2023, os números da inflação serão mais baixos [do que os atuais e previstos para o ano corrente]".
Ou seja, "as expectativas de inflação, como sabem, têm uma importância crítica de modo a evitar os chamados efeitos de segunda ordem, onde temos preços a subir, salários negociados mais altos e preços que continuam a subir na sequência desses níveis salariais superiores", rematou a líder do BCE perante os eurodeputados.
O Fórum BCE, a reunião anual da instituição que tem lugar em Sintra, regressa hoje, segunda-feira 27, até quarta 29, em modo presencial, o que não acontecia desde 2019, antes da pandemia. A grande conferência tem na agenda a questão urgente dos salários, justamente, entre outros temas.
Centeno alerta
Como referido, cinco dias antes, Centeno também não evitou o tema. O antigo ministro das Finanças do governo PS, de António Costa, admite preocupação com o futuro do poder de compra do rendimento disponível das pessoas, mas não transige quando veste o fato de banqueiro central.
Para o alto responsável, é crucial que as negociações no privado e as decisões na esfera do setor público "não geram pressões inflacionistas com as subidas de salários", é importante "que sejam no máximo em termos nominais idênticas ao nosso objetivo de inflação no médio prazo [2%], idealmente acrescidos de ganhos de produtividade".
Os acréscimos de produtividade estão essencialmente ligados à boa gestão e ao uso de tecnologia, por exemplo.
Para Centeno, "se esta regra for cumprida, não há razão para que efeitos de segunda ordem se façam sentir".
No entanto, o governador reconhece que embora esta ideia seja "analiticamente correta, ela depois pode não ter tradução política do ponto de vista das negociações concretas".
Aliás, no dia seguinte à sua chefe Lagarde ter abordado o problema dos "efeitos de segunda ordem dos salários" na inflação futura, Centeno revelou que "recebeu um conjunto alargado de membros do Conselho Económico e Social (CES)".
Aqui estão sindicatos, patrões dos principais ramos de atividade (agricultura e pescas, indústria, comércio, serviços, turismo, etc.), representantes dos consumidores, de defesa do ambiente, de universidades, "com o objetivo de ouvir opiniões e preocupações sobre o atual contexto económico nacional e internacional".
Alguns dos principais intervenientes do CES puderam "partilhar com o governador a sua visão sobre os impactos da recente subida dos preços na atividade económica do país e especificamente nas áreas que representam", explicou fonte oficial do Banco de Portugal.