Não é uma lista de 12 trabalhos épicos ou penitências, como na história de Hércules, mas é um rol de avisos sérios à navegação do governo e, em especial, a Fernando Medina, que vai assumir o comando das Finanças dentro de quatro dias (a 30 de março).
Prometem ser quatro anos com marés grandes e tempestades. Uma delas, a guerra, já está a revirar o mundo e pode escalar. A outra pode ser uma subida "repentina" das taxas de juro, alertou João Leão.
Na hora da despedida, o ministro das Finanças cessante fez uma retrospetiva do seu legado na pasta.
No fundo, passou a Medina a chave da máquina chamada consolidação orçamental e "contas certas", esperando que o ex-autarca de Lisboa continue o trabalho que Leão e Centeno - o primeiro ministro das Finanças de António Costa e hoje governador do Banco de Portugal.
Foi o legado possível na apresentação que fez das linhas mestras do Programa de Estabilidade para este ano (PE2022) e na apreciação à "boa notícia" divulgada ontem pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
O défice e a dívida devem continuar a cair e de forma evidente. No ano que vem Portugal já pode cumprir o objetivo médio do Pacto de Estabilidade. Está tudo encaminhado para que o país deixe finalmente o pódio das maiores dívidas públicas da Europa. Mas há trabalhos que podem ser mais complicados.
A guerra pode alastrar. "Apesar das perspetivas positivas sobre a recuperação económica e as finanças públicas", Leão assinala "dois riscos sobre o cenário base no atual contexto de grande incerteza".
"Os efeitos económicos da crise da Ucrânia podem agravar-se ainda mais" e neste "cenário adverso" a retoma fica-se pelos 3,8% em 2022, em vez dos 5% esperados no cenário central ou de base. Isto empata tudo e Medina vai ter de se preparar para reagir. Neste cenário mais severo, "estima-se que a melhoria das contas públicas seja mais gradual".
A sombra dos juros
Mas o que Leão verdadeiramente receia é a estagflação. Diz que ainda não estamos lá, mas este quadro recessivo ou de estagnação prolongada num ambiente de alta inflação está à espreita. "Este segundo cenário, mais adverso, ainda que não o antecipemos como o mais provável, é a possibilidade de verificar um contexto de estagflação."
Aqui, diz o ainda ministro das Finanças, Portugal até pode ter a dívida a descer, mas esta continua a ser exorbitante, pelo que o país ficará facilmente à mercê da "subida acentuada das taxas de juro pelo Banco Central Europeu (BCE), aumentando os encargos do Estado". No ano passado, os contribuintes pagaram 5,2 mil milhões de euros só em juros. É muito, é mais do que o défice previsto para este ano, por exemplo.
Este cenário de subida aguda dos juros (para arrefecer a inflação) teria "inevitáveis consequências sobre a recuperação económica e as contas públicas", adverte o governante. E mais. Não é só o governo que fica manietado. Neste contexto agreste de juros e preços, seria de esperar igualmente "dificuldades de financiamento para famílias e empresas, em termos de acesso e custo", acenou João Leão.
E assim ficou dado o principal recado ao sucessor.
Fora isso, Medina vai receber as Finanças Públicas num estado que, se não é impecável, parece que para lá caminha, mostram as novas projeções do Terreiro do Paço. Mesmo com pandemia, guerra e crises acumuladas às costas.
"Portugal é um dos primeiros países da União Europeia a atingir um défice orçamental abaixo do limiar de referência dos 3%, após o choque pandémico de 2020", disse Leão. "Apenas um grupo restrito de três ou quatro entre os 27 da União Europeia o terá conseguido. Portugal continua a ter contas certas", enfatizou.
João Leão referiu ainda que, em 2021, "a dívida pública retomou a trajetória de redução, diminuindo de 135,2% para 127,4% do PIB". Estes números são calculados pelo Banco de Portugal e também constam do novo reporte do INE.
Esta "trajetória da dívida apenas havia sido interrompida conjunturalmente pela pandemia, em 2020" e a descida anual em 2021 "é a maior queda percentual da dívida desde, pelo menos, a II Guerra Mundial". E o corte na dívida previsto para este ano será o segundo maior desde que nazis e fascistas tombaram perante as forças aliadas, em 1945.
"É talvez a melhor notícia para as empresas e as famílias portuguesas", congratulou-se ontem o ainda ministro.
Ponto de partida mais vantajoso
O ponto de partida para a redução do défice em 2022 é mais vantajoso, claro. O governo estimou um défice de 4,3% e afinal o INE ontem veio dizer que ficou em 2,8%. É uma folga substancial.
Como foi possível? O INE refere que "em 2021, o impacto orçamental direto das medidas de política pública no contexto da pandemia covid-19 foi ainda significativo".
Segundo cálculos com base em dados da execução orçamental das Finanças, o impacto direto das medidas covid no saldo em contabilidade nacional foi maior em 2021 do que em 2020. "Terá ascendido a cerca de 2,8% do PIB (2,4% em 2020)", refere o instituto.
No entanto, houve uma benesse que é pouco ou nada sublinhada. O governo e o ministro das Finanças não destacam muito este ponto, mas o orçamento de 2021 beneficiou de uma receita extraordinária enorme, de valor superior a 1,1 mil milhões de euros, o equivalente a 0,5% do PIB do ano passado.
Segundo o INE, trata-se da "receita da devolução da margem paga antecipadamente pelo Estado português, que ficou retida pelo Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), aquando da concessão inicial do empréstimo no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira, no montante de 1114,2 milhões".
Do outro lado do balanço, houve despesas pesadas, como é costume. No seu relatório, o INE destaca duas. "O aumento de capital, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, na TAP Air Portugal, com um impacto (líquido do reembolso parcial do empréstimo concedido pela TAP à respetiva holding que já integrava a dívida pública das AP - Administrações Públicas) de 640,5 milhões de euros" e "a concessão de uma garantia pelo Governo Regional dos Açores à SATA Air Açores, no valor de 120 milhões de euros".
Como o ponto de partida de 2021 é melhor, João Leão acredita que se pode ser mais ambicioso na meta do défice de 2022. Assim, o ministro inscreveu uma meta de défice público de 1,9% do produto interno bruto (PIB) para este ano e quem terá de cumprir esse objetivo será o seu sucessor.
Objetivos ambiciosos para dívida e défice
Mas o novo OE2022 ainda vai ser refeito e daqui a uns meses as condições envolventes não serão seguramente as mesmas, sobretudo se a guerra da Rússia contra a Ucrânia continuar.
Portanto, este ano, prevê Leão, a diferença entre receitas e despesas reduz-se para apenas 4,4 mil milhões de euros segundo as contas que o governo enviou ao INE.
A meta de 1,9% do PIB é, de facto, extremamente ambiciosa. Primeiro, tendo em conta o ambiente de crise que se vive desde o início do ano e agravada pela guerra, que já dura há mais de um mês.
Leão revelou que tal é possível porque a economia vem com um impulso de crescimento bom de 2021 e neste ano deve conseguir crescer 5% em termos reais. É outro valor que está em linha com o que prevê Mário Centeno (na quinta-feira, disse 4,9% de crescimento em 2022).
Recorde-se que, em outubro de 2021, no Orçamento do Estado que foi chumbado (OE2022), o ministro João Leão inscreveu uma meta de défice para este ano muito mais alta, de 3,2% do PIB, mas previa que a economia se expandisse 5,5%.
Agora, com uma expansão inferior (os tais 5%), o défice cai mais e tudo, ficando nos referidos 1,9% do PIB, meta para o final deste ano.
No Programa de Estabilidade (PE2022), as Finanças dizem que Portugal vai continuar no caminho das "contas certas", reduzindo o défice até ao equilíbrio e gerando depois excedente em 2026, o que fará com que o peso da dívida baixe para quase 100% do PIB nesse ano. Em 2021, este rácio foi de 127,4%.
E 100% é exatamente o mesmo número que Centeno avançou na véspera (quinta-feira), na apresentação do boletim económico do Banco de Portugal.
João Leão ainda fez questão de relevar outra ideia defendida por Centeno. Portugal precisa de "diferenciar-se" de outros países mais endividados e quanto mais cedo melhor. Para não ser punido pelos mercados e ficar exposto a subidas de taxas de juro ou de mexidas negativas no rating, é essa a ideia.
Assim, o atual ministro das Finanças prevê que em 2024, o país obtenha um rácio de dívida pública inferior ao de Espanha, França, Bélgica, Itália e Grécia.
Deixará de ser o terceiro pior, a seguir a Grécia e Itália, como hoje acontece - e há demasiados anos.