Leonel Pereira: "Todos querem ser chefs"

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Estou a arrumar o carro à sombra de uns pinheiros mansos no parque do restaurante São Gabriel, na Quinta do Lago, em Almancil. Marcam exatamente 12h55 no meu relógio. Quando faço marcha-atrás reparo que estou a ser observado. Quem me espera, de pé à entrada, é o chef Leonel Pereira. Um homem forte, alto, muito moreno e, pelo menos na primeira impressão que tive, com ar de poucos amigos. Foi com ele que vim almoçar.

"Pontualidade britânica", é a primeira coisa que me diz.

Senti-me ligeiramente desconfortável. A ideia de pontualidade está associada a um elogio, mas ali não soou assim. Segue-se aperto de mão firme, olhos nos olhos. Eu não sabia na altura, mas o chef tinha uma pequena espinha encravada comigo e não tinha nada que ver com horários. Passamos pela esplanada, onde os jantares são normalmente servidos nesta época de verão, e dirigimo--nos para uma mesa na sala interior.

Enquanto o chef vai à cozinha vou trocando umas impressões com Victor d"Avó, o escanção, e dou por mim a dizer: É mesmo assim que se escreve? D"Avó? Que nome original - para imediatamente me lembrar que não sou propriamente a pessoa mais indicada para me surpreender com nomes estranhos. Cresci a ouvir professores, amigos e colegas dizer: Wengorovius? Como se escreve?!

Victor está na casa há vários anos, já viu passar por lá muitos chefs, muitos clientes, e a estrela Michelin sempre a manter-se. Já lá vão 15 anos que a estrela lá está.

O chef Leonel Pereira transferiu-se do restaurante Panorama , no Sheraton, em Lisboa (onde esteve nos últimos cinco anos), para o São Gabriel em fevereiro deste ano e não houve ainda veredicto do Guia Michelin sobre a manutenção da estrela - um tema que não pode ser evitado nesta conversa, embora para mim não seja o mais interessante. O chef tem muitas outras coisas para dizer.

Quando Victor nos fala dos vinhos apetece ficar a ouvir. Fala num tom suave, mas seguro. Não está a vender nada, está a aconselhar, a explicar. O chef valoriza muito a complementaridade dos seus pratos com os vinhos que Victor sugere e não lhe poupa elogios: "É um profissional fantástico de muitos anos. Entendemo-nos bem. As duas coisas têm de brilhar, o vinho e a comida, juntos." Todos os restaurantes estrelados têm de apostar nesta parceria, aqui ela parece correr particularmente bem.

O chef regressa, senta-se e já está a falar ainda antes de eu lhe colocar qualquer pergunta. "Ninguém quer ser cozinheiro, todos querem ser chefs", diz. Interessante, para começo de conversa. Boa forma de ilustrar esta ideia, talvez muito nossa, de querer sempre saltar etapas, de ter como objetivo ser-se alguém que manda antes de ser alguém que sabe.

E sem me deixar falar continua, questionando a forma como a profissão está a ser encarada pelas novas gerações. "Os pais de classe média gostam de dizer que os filhos estão a estudar para serem chefs, mas não pensam que quando eles saírem da escola o que vão encontrar não são as condições de um médico ou de um engenheiro. Vão talvez ganhar 450 ou 500 euros."

Além de terem uma progressão muito lenta, avisaria eu.

"Há aqui um erro de casting enorme", afirma. Engraçado, pensei, como casting era um termo dos media, da indústria do entretenimento, da moda, da publicidade, mas agora usa-se em todo o lado. No seu entender, tudo isto é exacerbado pelo excesso de mediatismo dos chefs e pela forma como os programas de televisão os representam e, de certa forma, idolatram. "Depois é a classe dos cozinheiros. Doa a quem doer, a verdade é que a maior parte dos chefs no nosso país e no resto do mundo quer estar à frente do produto. E isso é gravíssimo. [Para eles] primeiro está a imagem. Está aqui um kobe (famosa carne que vem de vacas de uma das raças wagyu, da região de Kobe no Japão, com textura marmoreada e sabor excecional, que custa entre 350 e 500 euros o quilo) ou um robalo - e depois põem-se à frente do robalo!" Não é preciso muito tempo para perceber o perfil do chef. Não tem papas na língua, está sempre ao ataque e "não faz prisioneiros" - como se diz nos filmes de guerra. "Quero poder dizer sempre o que quero; ser politicamente correto é ser mentiroso a maior parte do tempo", dir-me-á mais do que uma vez.

Quando era novo, praticava artes marciais e quando chegou a altura de ir à inspeção militar ficou apto para todas as forças especiais. Mas optou pelos fuzileiros por causa de um amigo. Dizem-me pessoas que por lá passaram que um dos lemas daquela tropa de elite era "fuzileiros uma vez, fuzileiros para sempre". Eles lá sabem.

Continua ao ataque: "Um exagero na televisão, programas mal feitos, põem alguém a copiar os outros programas. É tudo copy/paste."

É a primeira de muitas vezes que o chef irá insistir na importância de fazer diferente. "Eu sou contra os copy/paste, é preciso criatividade. A maior parte dos chefs nem sabe o significado da palavra criatividade, nem se deu ao trabalho de ir ver ao dicionário." Mais um tiro.

Por momentos tive um dejá vu. Parecia que estava a ouvir um outro chef que não se cansava de lembrar a mesma coisa na "cozinha" da BBDO: o meu sócio Pedro Bidarra, vice-presidente e diretor criativo da agência. O mesmo inconformismo, a mesma provocação, a mesma frontalidade. Quem sabe, foram separados à nascença. E então o chef remata com um pensamento que reflete bem um problema crescente dos nossos dias, nas cozinhas, nos jornais, no ensino, nas empresas: "Para eles, ser criativo é andar na internet a ver o que os outros fazem, para copiar."

A internet que nos trouxe tudo também nos alicia constantemente para o caminho mais fácil, se não for contrariada. Os pais, o ensino, os empresários têm de encontrar formas de incentivar o ato criativo e premiar quem ousa inventar, quem busca o original; ou então não haverá progresso. É tudo igual. E quando é tudo igual, o mais barato prevalece. "Só que a net não tem sabor", diz o chef. Pois é, não tem. "Tem imagem, mas não tem sabor. Se publico os meus pratos há logo uma série de miúdos que vão copiar e partilhar, mas vão copiar o look e o design, e não o sabor. E isso é grave."

Gosta de dizer que a sua criatividade começa sempre com a palavra "sabor" num flipchart no meio da cozinha. E daí nasce um prato. Parte de um ingrediente principal, robalo, por exemplo. "E agora com que vamos harmonizar o robalo? Primeiro, vamos encontrar as combinações possíveis, depois a apresentação, o design. Só depois de tudo saber muito bem."

Colocam na mesa uma manteiga montada - "na semana passada era de beterraba, na anterior era de mexilhão", esta é com queijo roquefort.

A certa altura fala sobre juntar seis ingredientes que se complementam num prato e eu pergunto: é possível ter seis sem que se atropelem uns aos outros? Sem me aperceber dei--lhe a dica de que precisava. Responde que sim, é possível, embora a sua cozinha esteja agora a seguir um caminho mais simplista.

"Mas não simplista de mais. Como alguns chefs dizem e eu sou completamente contra, seja ele quem for, o difícil é fazer uma coisa simples. Isso é falta de criatividade pura." A expressão pareceu-me familiar. Ele continua: "Quando a cerebrola não funciona mais, põe-se uma coisa básica e dá-se a comer e faz-se uma história à volta daquilo. E a maior parte das pessoas, mal informadas, críticos e tudo, dizem que foi espetacular só porque o chef tem um nome, mais do que dizerem o que estão a sentir."

O tiro era para mim. Era a espinha encravada.

Há uns meses escrevi sobre isso. Elogiei a aparente simplicidade de um dos 16 pratos que comi no Eleven Madison Park, em Nova Iorque, que consistia apenas numa ostra, coberta por pequenas flores e um molho mignonette - um condimento à base de pimenta, vinagre e chalotas picadas. A propósito disso citei um outro chef, muito conhecido, que me tinha referido, numa conversa que tivemos sobre criatividade na alta cozinha, como era difícil fazer algo muito bom e original mas simples. É muitas vezes verdade. Porque a tendência é acrescentarmos camadas de complexidade e ruído sempre que buscamos a diferenciação. Não só na cozinha mas em tantas outras coisas. Qual foi a última vez que tentaram comprar um televisor?

O facto é que a ostra me soube lindamente e gostei da ideia. Foi o que senti, e tal como o chef também digo o que penso,... Mas admito que, como quando avaliamos um quadro de um famoso pintor, há sempre a possibilidade de estarmos a ser influenciados inconscientemente pelo peso do autor. A qualidade do que apreendemos é amplificada, como o prazer que sentimos. É assim, aliás, que funcionam as marcas fortes. Têm uma aura que amplia o prazer que temos ao comprar o produto e depois ao usá-lo.

Dizem os neurocientistas que é uma defesa. Nós vemos o que queremos ver. Paguei mais por uma marca de prestígio, acredito que a experiência que vou ter é boa e o cérebro encontrará formas de impedir que seja dececionado. Já repararam como os nossos amigos justificam uma compra mais extravagante? É curioso, porque em teoria ninguém está a ser defraudado. Pago mais, tenho mais prazer. Mas o inverso pode ser injusto para aquele autor desconhecido que produz uma obra de qualidade. Pois facilmente pode passar despercebido.

Leonel Pereira diz mais. Acredita que muitas vezes essa simplicidade é apenas uma forma de camuflar uma falta de esforço na busca de ideias. Porque ter ideias dá muito trabalho. É verdade, dá muito trabalho.

Lembro ao chef que há também muita gente que complica para parecer que é esperta e isso é pior ainda. Vi isso nos anúncios, também existirá na cozinha. "Concordo completamente. E entre esses e os que só lhe põem uma coisa no prato, ainda assim prefiro os segundos."

Tréguas.

Tudo isto me fez pensar que a leitura da palavra simples não é nada simples. É uma palavra que pode ter muitas conotações. Pode significar o comum, o vulgar, o ingénuo. Mas também o puro, o natural, o sem enfeites. Quando ouvimos alguém dizer "é tão simples!", pode estar a sugerir que algo é genial como querer dizer "porque é que hei de pagar mais por isto?"

Avancemos.

Criatividade do chef

Chega o amuse bouche "uma lima grelhada com guacamole e uma vieira. A ideia é agarrar de lado e apertar para vir buscar um pouco de sumo e um pouco do queimado". É fresca, saborosa e... se dissesse agora simples só iria reabrir as hostilidades.

Victor serve-nos uma lambreta. É para o próximo prato. Não é habitual num restaurante estrelado. Mas isso não o preocupa. O que interessa é que faça sentido com o prato que acompanha. Chama-se Ria Formosa e é inspirado no fitoplâncton. Em particular, nas algas e no krill. "Isto é uma hóstia crocante de cérebro do carabineiro e eu tentei mentalmente imaginar o sabor desses seres." É coberta por minicamarões de rio ordenados minuciosamente uns atrás dos outros e acompanhada de uma misteriosa bisnaga (como um dentífrico). Dela surge o fito - a alga mar.

"O que recomendo é colocar uma camada de fito por cima disto e depois pega-se à mão e trinca-se." É supercrocante e supersaboroso. Dou um gole na lambreta e aprovo a combinação.

Continuamos a conversa. O chef sublinha o facto de os chefs mais influentes terem uma responsabilidade acrescida de darem um bom exemplo. E nem sempre o fazem. Conta-me que um advogado ilustre que conhece lhe ligou recentemente enquanto estava a jantar num dos melhores restaurantes do mundo. "Tinham-lhe servido uma lula ainda com a gelatina crua do mar e ele ligou-me a perguntar - isto é mesmo assim?" E explica: "A lula crua? Quem não é conhecido pode fazer as loucuras que quiser, mas quem é muito conhecido tem outra responsabilidade. Que cozinhemos um peixe nos pontos a que tem de ser cozinhado - a 49o, 50o (a temperatura a que deve estar o interior do peixe para que esteja perfeitamente cozinhado), depende do peixe, pode até ser 48o, mas 46o ou 47o? Começa-se a comer um robalo e depois chega-se ao meio e está... cru? Então para isso serve-se sashimi." O chef sabe bem da importância de ser original, mas não a qualquer custo. "Surpreender, mas com verdade", diz-me.

Segue-se um branco. Redoma da Niepoort. "Não tem muita madeira, está equilibrado, acidez boa. Leva Ravigato (que lhe dá frescura) e Viosinho (a fruta)", diz-nos Victor. E chega o próximo prato. "Isto é uma cavala, aliás, hoje é sarda fumada aqui por nós; estou a trabalhar muito os produtos da terra e aqui temos logo cinco, temos beterraba, compota de cebola, açafrão, aipo e rábano. É picante e fresco." E leva pó de laranja, lembra-me a seguir.

"Este não vou esquecer, dizem--me." Eu também não, é ótimo.

Reparei no ar bruto do prato: "É artesanal, custa quase 40 euros cada um", diz-me. "É bruto mas estou cansado de loiça convencional." Conta que recusou o convite de uma empresa portuguesa de cerâmica para desenhar um prato para a coleção que a marca está a fazer com vários chefs estrelados porque não é designer e não gosta de se comprometer com marcas. "Não pactuo com isso nem com parceiros, com ninguém, seja de marcas, produtos, o que for, quero comprar onde quero."

Acha que os chefs que se associam a marcas ficam condicionados e isso não é para ele. "Eu vivo do salário que me pagam, sempre foi assim. Se ganho pouco é porque não soube negociar com o patrão." Pergunto-lhe sobre os produtos portugueses. "Dou preferência aos produtos portugueses, sim. Mas não sou chauvinista ao ponto de dizer que somos os melhores do mundo. Há coisas muito boas mas não conheço o mundo inteiro; porque é que alguém se acha no direito de dizer que é o melhor do mundo?" O próximo prato não leva sal. É servido sobre uma pedra de sal--gema de Loulé aquecida e que assenta numa base de cortiça.

"Atum rabilho de Olhão, pimenta de Szechuan, kumquat em compota." O atum tinha 120 kg. Comprou 30 kg. É bom, é fresco, mas tem de se comer rapidamente para não cozer demasiado. Comento que não é fácil cortar o atum. Responde-me: "Ninguém da minha equipa toca no atum, só eu." Quantas pessoas tem na cozinha? "Doze, dois em cada secção mais dois soltos. E eu."

Gerir pessoas

Aproveito para perceber um pouco do percurso do chef. Nasceu no Algarve, estudou em Portugal mas teve formação em algumas das melhores escolas do mundo: CIA (Culinary Institute of America), no mesmo centro de formação de Alain Ducasse onde estive, mas sobretudo na Lenôtre, escola de cozinha conceituada em Paris, criada em 1971 por Gaston Lenôtre.

"Tenho as minhas bases clássicas, as minha bases regionais", diz. Passou por muitos hotéis. Foi sous-chef de sete chefs (entre eles Fausto Airioli e Aimé Barroyer). Foi chef e diretor de F&B (Food and Beverage, comidas e bebidas) das Pousadas de Portugal. Trabalhou em vários países, mas foi no Brasil, com o grupo Pestana, que deu um grande salto. "Abri sete hotéis do Pestana em quatro anos no Brasil." Teve de aprender a transformar os seus pontos fracos em pontos fortes: "Sempre sobressaí na liderança e nos recursos humanos. Mas era uma área em que não era bom."

Foi aí que foi eleito "chef Revelação do Ano" pelo Guia Quatro Rodas, das edições abril (no Brasil não há Guia Michelin). Chamavam-lhe "cozinha portuguesa moderninha", diz o chef simulando sotaque brasileiro, sem esconder um certo orgulho.

Segue-se "salmonete cozinhado a unilateral sob creme de ruibarbo e espargo (branco)", acompanhado de um JM Fonseca, Verdelho, Coleção Privada. É uma maravilha de uma combinação. Comento que o espargo está crocante. "O difícil em cozinha é respeitar os pontos", diz. E cada ingrediente tem o seu. O salmonete, o ruibarbo, o espargo, cada um chega a uma altura a que está "no ponto". Nem antes, nem depois.

Continuamos a falar do que é o dia a dia de quem tem de gerir grandes equipas: "Eu queria ver muita gente que se acha no top a gerir 70 cozinheiros, muitos deles problemáticos. Eu dava consultas de psicologia de horas àquela gente, com problemas familiares, dívidas, a pagarem casa, megalómanos que não perceberam que são classe baixa e nunca vão ser ricos, que compraram casas melhores do que a minha e tinham carros melhores do que o meu e estavam endividados."

Há qualquer coisa no seu discurso que faz lembrar Kitchen Confidential, best seller que lançou Anthony Bourdain, onde o chef revela os bastidores mais perturbantes das cozinhas.

Mudo de assunto, falo de recrutamento e pergunto-lhe a sua opinião sobre as escolas de cozinha, diz-me que elas fazem o que têm de fazer que é ensinar o clássico "e mal daquele que não souber o clássico porque nunca vai conseguir fazer o contemporâneo". Durante anos, não quis estagiários de algumas escolas porque "ensinam-lhes a fazer cozinha molecular e bolinhas e depois não sabem fazer um bechamel nem uma maionese, a base, a partir da qual se podem fazer coisas fantásticas".

Ocorreu-me que hoje nas agências de publicidade é difícil encontrar um "diretor de arte" - a pessoa responsável pela parte visual e que faz dupla com o copywriter - que saiba desenhar. O que é paradoxal.

Vem a carne. Puré de couve-roxa fumada, presa de porco. Servida com um Quinta do Castro. "Leva Touriga Nacional, Tinta Roriz e Touriga Franca", diz Victor.

O porco foi cozinhado em sous-vide (em vácuo) durante 12 horas a 67o. Os fumados fazem-me lembrar a cozinha nórdica mas o chef lembra--me que "o Algarve também tem uma tradição de fumo e secagem".

Custos calculados

Falamos de dinheiro. A passagem pela hotelaria deu-lhe uma noção muito precisa dos custos e da gestão. "Nem todos os chefs têm o mesmo background. Há chefs que cozinham muito bem e ponto final. E levam restaurantes à falência uns atrás dos outros. Porque não fazem contas. Ninguém sabe o que é o food cost porque não trabalharam em hotéis."

O food cost é um rácio muito utilizado na indústria da restauração que mede o peso do custo da matéria-prima no preço total do prato, em geral não deve ultrapassar os 30% a 35%. Mas na cozinha de autor o rácio pode ser superior. Um artigo da revista Forbes apontava para um valor médio da ordem dos 38% a 42%. E, claro, varia de prato para prato. Há ainda que somar tudo o resto. Muita mão de obra na preparação dos pratos, custos das instalações, equipamento, loiça, etc.

Tenho observado que quase todos os chefs com que me tenho cruzado têm uma preocupação enorme com os custos e uma noção muito clara do negócio, mas admito que também haja quem não as tenha.

A verdade é que o negócio é duro. Este tipo de cozinha tem sempre uma limitação de escala. No São Gabriel são, no máximo, uns 70 lugares por noite (está fechado ao almoço, não compensa). Não roda. Quem vem, está a noite inteira. O cliente paga 75 euros por um menu de sete pratos, sem bebidas. Parece muito. Mas há muitos custos envolvidos. O chef dá exemplos: "Ao preço que chegou o lavagante (36 euros/kg) mais o IVA que tenho de pagar, estou a perder dinheiro para ter lavagante." Mas "a carta tem de se ver no seu todo".

Aliás, como em tantos outros negócios. É um fenómeno de subsidiação cruzada. Há áreas que não posso deixar de ter porque são emblemáticas, mesmo perdendo dinheiro. Sem elas não há a reputação ou a escala necessárias para se ter acesso a outros negócios, esses sim, rendivéis.

"Este prato custa 37 euros. Se se parte...", acrescenta. Nos vinhos também há arte. "Só nos vinhos baratos é que se ganha algum dinheiro" (nos outros não se consegue multiplicar por três). Interrompemos a conversa por um bom motivo: a sobremesa. "Ruibarbo, crumble de maçã, sorvete de framboesa e rosa pura em marmelada." Ótimo para terminar.

Depois do café vamos à cozinha e a seguir à horta que tem nas traseiras. O chef pega numa mangueira, rega alguns legumes, parece outra pessoa. Mais relaxado, no seu habitat. Olho para ele e penso que está ali alguém com mais facetas, não apenas as que se revelaram na personagem do fuzileiro.

Diz-me: "Não pretendo ser o chef da televisão, uma pessoa conhecida pelas tias todas, ir ao mercado e ser cumprimentado. Quero ser reconhecido no mundo de quem se preocupa com o que come [ser lembrado] como alguém que deixou a sua marca, por um tipo que lutou, fez equipas."

A estrela

A primeira vez que entrou numa cozinha foi há muitos anos, no Dia do Trabalhador. Talvez isso o tenha marcado para não ter receio de trabalhar. E diz quem o conhece bem que ele é incansável. Um chef talentoso, com um ego grande, mas também com humildade para se sentar a ouvir uma velha cozinheira ensinar-lhe a fazer migas numa Pousada de Portugal algures no Alentejo.

É impossível adivinhar o que pensam os anónimos inspetores Michelin - às vezes tomam decisões que poucos entendem - mas ficaria surpreendido se a estrela não se mantivesse no São Gabriel. Algo teria de correr muito mal no dia da secreta visita para o justificar. "Melhorámos a cozinha, investimos. Temos uma cozinha mais criativa, com qualidade. Boa equipa, o serviço é o mesmo, clientes satisfeitos. Vamos ver", desabafa, como quem diz "agora já não depende de mim".

Vi uma vez um documentário na televisão onde entrevistavam uma pessoa de muita idade. Bonita, ar jovial. Perguntaram-lhe qual o segredo para envelhecer tão bem. Não me recordo do nome, mas guardei o que disse: "Aceitar o que não podemos alterar e não nos preocuparmos com o que não depende de nós."

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