É a filha primogénita da Igreja desde o batismo de Clóvis. Teve Carlos Magno por Rei, bem como seus sucessores, até à dinastia dos Capeto. Foi o coração espiritual e cultural da Europa, berço das cruzadas, da literatura provençal, do ideal cavalheiresco e do amor cortês. Venceu a Guerra dos 100 anos contra a Inglaterra, despojando-a dos seus territórios continentais. Manteve-se católica até alinhar com os protestantes, contra o sacro-império dos Habsburgo. Saiu reforçada do Tratado de Vestfália, assim premiando o legado estratégico de Sua Eminência, o Cardeal Richelieu. Fundou o iluminismo e tornou-se a bússola ideológica desta catadupa de revoluções que tem sido a modernidade. Gerou também o primeiro dos filhos tirânicos da revolução, o mesmo que fez Beethoven corar de remorso, obrigando-o a mudar o título da 3ª sinfonia, de Bonaparte para Eroica. Por fim, expandiu-se num dos maiores impérios coloniais da história, o qual só começou a ruir após a metrópole ter sido palco de duas guerras mundiais.
Tudo isto é a França, ou era. Em 1920, a quantidade total de terras sob soberania francesa alcançou os 11.500.000 km2 (4.400.000 km2), com uma população de 110 milhões de pessoas, em 1936. No entanto, desde o pós-guerra que esta nação tem visto o seu poderio e influência a decair em flecha - uma realidade bem satirizada na série da Netflix, Au Service de la France (2015-2018).
Em termos culturais, os franceses tiveram nos existencialistas e pós-modernistas o seu canto do cisne, por sua vez refletido no cinema da Nouvelle vague. Na economia, a sua performance tem sido inferior à do Reino Unido, acompanhado o marasmo de uma Europa que se recusa a crescer desde 2008, sob o evidente predomínio alemão. Pois, mesmo em termos ideológicos, há muito que a UE deixou de se inspirar no humanismo iluminista, de raiz continental, para abraçar o ideal trans-humanista, com base no cientismo ecológico, cibernético e de pendor global.
Nos últimos 40 anos, os franceses tiveram aproximadamente duas décadas de governos socialistas, intercalados por uma amálgama de centro-direita que reclamava a vaga herança gaullista, a União por um Movimento Popular (UMP), e cinco anos de Macron, que não é carne nem peixe. No meio disto tudo, apareceu Sarkozy, o Presidente que voltou a colocar a França no centro das decisões europeias. Desafiou o predomínio alemão, sustentando uma união dos países mediterrânicos e reforçando o papel desses países na relação com o norte de África e o mundo árabe, enquanto defendeu uma exigente política de controlo fronteiriço e de combate à imigração ilegal. Não admira, portanto, que se tenha tornado o patinho feio da comunicação social e alvo das já habituais injúrias de racismo e islamofobia, por parte da esquerda politicamente correta.
Com Sarkozy fora de jogo, os socialistas voltaram à carga com Hollande e seus compadres. Rapidamente a França devolveu as rédeas da UE à Alemanha, voltando a ser o país dos croissants, do vinho e do pseudo-intelectualismo barato. Um dos frutos desse pseudo-intelectualismo, aliás, ficou bem patente na estúpida convicção de que tirar dinheiro aos ricos para o dar à burocracia possa resultar nalguma forma de justiça. O caso de Bernard Arnault ilustrou perfeitamente o quão pouco incomodados ficam os tais super-ricos que Hollande queria taxar a 75%. Após esclarecer que permanecia no país, o bilionário até elogiou a medida, impondo-a aos seus funcionários mais ambiciosos - esses sim, verdadeiramente prejudicados, por viverem apenas dos rendimentos do trabalho.
Escusado será relembrar o rotundo fracasso em que resultou o justicialismo fiscal de Hollande, bem como o de toda a governação socialista. Neste momento, as sondagens dão entre 2% e 4% ao partido que agora apresenta a feminista andaluza, Anne Hidalgo, às presidenciais de 2022. Quanto ao provável vencedor, tudo aponta que venha a ser Macron, com uma projeção eleitoral de 23% a 27%, ainda que a sua popularidade esteja sobrevalorizada. Afinal de contas, os indignados franceses (coletes amarelos e afins) não têm parado de aumentar e, na sua perspetiva, a gestão da pandemia terá exponenciado drástica e precisamente os motivos da sua indignação. Neste contexto, talvez não tenha sido boa ideia o Presidente ter resolvido ultrapassar a linha da decência e atirar mais achas à fogueira, ao vir a público dizer que pretende "irritar" os não-vacinados - como se a oposição ao regime já não estivesse irritada o suficiente.
Quanto à referida herança gaullista, desde 2014 que, por iniciativa de Sarkozy, mudou a designação partidária de UMP para Os Republicanos. Agora com uma imagem renovada, parece estar a ganhar força, correspondendo a 17% das intenções de voto. Assim, caso vença, França terá em Valerie Pécresse a primeira mulher presidente da sua história. Contudo, verdade seja dita, o mesmo poderá suceder com a sua rival à direita, Marine Le Pen, que ostenta projeções semelhantes. Até porque, neste mundo em que todos os políticos viraram populistas, convém não desprezar quem melhor domina a arte de provocar calafrios nos jograis do "sistema", qual cavaleira que diz "Ni!".
Em suma, aconteça o que acontecer, duas coisas os franceses poderão dar como certas nestas eleições de abril. A primeira é que os socialistas não irão a lado nenhum. A segunda é que Macron, mesmo que vença, não é, nunca foi, nem nunca será capaz de unir uma França que, desde o pós-guerra (senão mesmo desde a revolução) é uma manta de retalhos.
Economista e Investidor