Mais do que financiamento, a ciência portuguesa precisa de estabilidade

Pedro Matos Pereira elogia a qualidade dos cientistas nacionais, mas critica a falta de "previsibilidade" nos concursos e a ausência de estratégia na produção de conhecimento.
Publicado a

Habituado à realidade científica no Reino Unido, onde viveu e trabalhou por vários anos, Pedro Matos Pereira regressou a Portugal porque conseguiu financiamento para a sua investigação através da Fundação la Caixa. "O meu país investiu muitíssimo na minha educação e nas condições que tive para ir para fora", aponta. De volta à casa-mãe, o investigador do ITQB-Nova está atualmente a "tentar perceber como é que as bactérias patogénicas entram nas nossas células" e à procura de soluções para "evitar que isso aconteça". O bolseiro participou, no passado dia 19, em mais uma DV Talk, desta vez dedicada ao impacto da tecnologia na investigação científica e que juntou, ainda, o consultor Pedro Couto.

Para Pedro Matos Pereira, o maior desafio colocado aos cientistas portugueses prende-se com a falta de "previsibilidade" dos concursos para atribuição de financiamento, mas também de uma política coesa para a ciência. "No Reino Unido, a ciência é aborrecida no melhor dos sentidos. O financiamento acontece sempre nas mesmas alturas, com os mesmos valores e com as mesmas regras", explica. Essa estabilidade a que se refere é, diz, fundamental para que as equipas possam planear, a médio-longo prazo, os trabalhos que pretendem executar, o número de profissionais de que vão precisar e os recursos de que vão dispor. "Se isso acontecer, os cientistas vão continuar a fazer o bom trabalho que estão a fazer", assegura.

Aliás, a importância de conseguir garantir investimento financeiro no desenvolvimento de investigação torna-se clara quando o bolseiro explica que só regressou ao país de origem por ter conseguido apoios. "Candidatei-me à Fundação la Caixa de forma a ter financiamento para a minha investigação. Foi a base para o início do meu laboratório", afirma. É também por isso que pede ao Estado que olhe para os procedimentos implementados e procure definir regras estáveis e transparentes, mas sobretudo que defina uma estratégia para alavancar a inovação feita em território nacional. "Inglaterra é um exemplo de inovação e não é diferente daquilo que existe cá", aponta, reforçando a confiança na qualidade da produção de conhecimento em Portugal.
Oportunidades que vêm de fora

Apesar do objetivo definido pelo governo para chegar a 2030 com um investimento anual na ciência de 3% do PIB, parece ainda existir muito caminho a percorrer até que esse número seja uma realidade. Em 2020, o país desviou apenas 1,6% do PIB para esta área, mantendo-se abaixo da média europeia no que a esta rubrica diz respeito. Porém, Pedro Matos Pereira diz ser preciso perceber a que se deve a indisponibilidade de recursos. "Se não há dinheiro suficiente é por uma de duas razões: ou não há dinheiro para investir porque o país tem limitações ou porque não há interesse", observa.

O Associate Director da Accenture Technology acredita que "vai haver muito dinheiro" para apoiar a comunidade científica ao longo dos próximos anos, em particular com a bazuca europeia que junta fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e do Portugal 2030. "Esperemos é que seja canalizado para a inovação", avisa Pedro Couto. O especialista apela a que o dinheiro "seja bem utilizado", nomeadamente através da aplicação em "projetos que nos façam, de facto, avançar" enquanto país. Questionado sobre a importância de as empresas absorverem, nos seus quadros, profissionais de diferentes áreas com doutoramentos, o consultor acredita ser "importante ir buscar estas pessoas" para as organizações. Talentos, garante Pedro Matos Pereira, não faltam em Portugal. "O ponto forte da ciência em Portugal não há dúvida que são as pessoas", atesta.

A poucos dias do início de mais uma edição da Web Summit, em Lisboa, o país prepara-se para voltar a ouvir termos como inteligência artificial (IA), machine learning, big data ou cloud computing aplicados no mundo dos negócios. No entanto, estas tecnologias são cada vez mais utilizadas para alimentar projetos disruptivos transversais a todos os setores de atividade, incluindo a ciência e a saúde. Pedro Matos Pereira conhece bem essa realidade, até porque muitas das suas investigações dependem, em grande parte, do poder computacional destas soluções. "A tecnologia influencia tudo o que fazemos no laboratório", afiança. "Está a ser uma revolução", complementa Pedro Couto.

O responsável da consultora refere-se à utilização geral destas ferramentas, embora exemplifique com o caso concreto da IA. "No caso da investigação científica, a IA é algo que traz oportunidades brutais na área farmacêutica", diz, continuando que desta forma é possível "fazer testes com uma velocidade e capacidade brutais, que aumentam a possibilidade de descobrir novos remédios".
As vacinas contra a covid-19, em particular as de base mRNA, e o tempo corrido entre a investigação fundamental e a aplicada servem de exemplo "revolucionário", aponta Matos Pereira. Na microscopia, refere, a IA permite "acelerar a forma como adquirimos dados para explorar os que já temos" e evitar os "preconceitos" inerentes ao olho humano. "O facto de conseguirmos ter os dados a serem analisados da mesma forma é poderosíssimo", acrescenta. Por outro lado, a tecnologia permite analisar uma quantidade muito superior de dados e realizar experiências de forma autónoma. "Nunca vai substituir o fator humano, porque temos sempre de olhar para os resultados e contextualizá-los", reconhece.

Sobre a preparação técnica dos laboratórios portugueses, Pedro Matos Pereira diz que "alguns estão bem equipados e outros não", em particular pela dificuldade "em manter uma cadência constante no financiamento da investigação". O cientista afirma que os fundos europeus são, por norma, o principal meio para a aquisição de equipamentos e tecnologias. Pedro Couto, cuja principal função passa por ajudar as organizações a implementar a transformação digital nas suas estruturas, acredita que o contexto de emergência sanitária veio dar "um empurrão em termos de inovação" em várias áreas da sociedade, incluindo a ciência. Apesar de ser difícil antecipar o que o futuro reserva nesta matéria, o bolseiro Pedro Matos Pereira não tem dúvidas de que a tecnologia veio para ficar e que a covid-19 deixará marca na forma como também a ciência funciona para lá da investigação. "As coisas estão a voltar ao normal no que é essencial, mas no que foi disruptivo e positivo estamos a aproveitar claramente", remata.
=

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt