Maria de Lurdes Rodrigues: "O PS tem de puxar pela agenda da dívida"

Maria de Lurdes Rodrigues foi ministra da Educação no primeiro governo de José Sócrates, é professora no ISCTE e autora de dezenas de artigos científicos no domínio da Sociologia e da Educação. Nos últimos anos envolveu-se também na coordenação do Fórum das Políticas Públicas, um espaço de debate sobre as políticas nos últimos anos e que lançou, nesta semana, um livro sobre o período da troika, que conta com dezenas de contributos de académicos e de figuras públicas de vários quadrantes.
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Quais são as duas ou três principais conclusões que se podem retirar deste conjunto de textos publicados pelo Fórum?

O memorando tinha três grandes pilares: a sustentabilidade das contas públicas, com um foco muito forte no défice orçamental, na despesa e na receita, a estabilidade do sistema financeiro, e as designadas reformas estruturais. No que diz respeito à consolidação das contas públicas, nenhum dos objetivos previsto no memorando inicial foi alcançado. Os objetivos foram sendo renegociados, mas mesmo na renegociação houve objetivos que nunca foram alcançados. Aquele de que o governo mais se aproximou foi o do controlo do défice, e criou-se uma imagem pública de que esse controlo tinha sido conseguido à custa de um enorme aumento dos impostos, de receitas, e não à custa de cortes na despesa.

Essa perceção está errada?

Essa perceção está errada. A análise dos dados demonstra que a redução do défice público foi conseguido à custa de cerca de 60% de cortes na despesa e de 40% de aumento da receita. O governo teve dois momentos. No primeiro biénio houve uma concentração enorme de cortes na despesa. O governo, de forma diferente da consagrada no memorando, resolveu fazer o corte de forma repentina. Suspendeu o investimento público totalmente, quase de uma dia para o outro, e fez os primeiros cortes nos salários da Administração Pública. Isso correspondeu a um corte de 10 mil milhões de euros. É depois, no segundo biénio, que vem o aumento de impostos e o contributo das receitas, mas o aumento de impostos nunca foi além dos 6,4 mil milhões de euros. É verdade que os 10 mil milhões tiveram, no biénio a seguir, uma reversão em resultado das decisões do Tribunal Constitucional, mas essa reversão nunca foi superior a 3 mil milhões e portanto estamos ainda a falar de um contributo do corte da despesa da ordem dos 7 mil milhões.

Isso é um reconhecimento que o governo seguiu a linha que se propôs seguir?

Não, por duas razões. Uma de método, que foi o ter concentrado todo o corte da despesa no primeiro exercício orçamental. Isso foi um erro com impactos enormes na economia e que implicou um confronto público, político com o Tribunal Constitucional, que era totalmente dispensável. A metodologia foi errada, porque foi muito inspirada na ideologia da austeridade expansionista, de se cortar tudo num ano e esperar que no ano seguinte a economia esteja renovada e a crescer, e isso não aconteceu. Por outro lado, o que se seguiu foi uma improvisação total que levou a mais conflitos com o Tribunal Constitucional. Às tantas é como se o governo tivesse perdido o controlo. O objetivo principal, que era o da redução do défice público, foi mais ou menos alcançado em função das renegociações que foram feitas, mas já de uma forma atabalhoada, sem sentido, e sobretudo não sustentável. Os cortes acabaram por ser feitos nos montantes globais mais volumosos. Onde é que há muito dinheiro? Nos salários da Função Pública. Então corta. Nas pensões. Então corta. Mesmo aquilo que se conseguiu na redução do défice não é sustentável, porque os salários não vão poder ficar indefinidamente congelados, por todas as razões e mais alguma, desde logo também por razões económicas que têm a ver com o estímulo à procura.

Este foi um resgate de base ideológica?

Foi uma oportunidade para cumprir um programa ideológico que não estava consagrado no memorando, e que o governo dificilmente teria conseguido fazer passar se não tivesse o pretexto da troika.

No capítulo das reformas estruturais, a que conclusões é que o Fórum chegou? O governo diz que fez 20 reformas.

O governo pode dizer tudo e mais alguma coisa mas a verdade dos factos é só uma: onde houve uma efetiva alteração, muito próxima do que estava no memorando, foi na política do medicamento e na regulação do mercado de habitação e do arrendamento. São duas áreas cuja intervenção corresponde ao que estava previsto, e que de certa forma foram bem sucedidas, independentemente da avaliação política e de se concordar ou não com elas. Na política do medicamento, podemos considerar que o sector das farmácias foi afetado e que nunca mais vamos ter o serviço de farmácias que tivemos. Podemos fazer todas essas avaliações políticas, mas o ministro cumpriu o programa, e com esforço porque essa matéria não é nada fácil. Em tudo o resto há outras duas situações: ou o governo ficou aquém ou o governo foi além do planeado, e tomou decisões que não estavam previstas. Ficou aquém nos transportes e na energia, foram dois sectores em que prometeu mundos e fundos, entrou como um leão e saiu de mansinho. Foi além na reforma do mercado de trabalho e no que respeita às pensões.

Portugal pagou um preço demasiado caro para atingir os objetivos orçamentais?

Pagou um preço desproporcional e, de certa forma, inútil. Basear o controlo do défice apenas na redução dos salários, na redução de pensões e na anulação quase total do investimento público não é sustentável, porque país nenhum pode viver sem investimento público. Também não se pode manter indefinidamente o congelamento e a regressão de salários que houve na Função Pública. Nalgum momento isso terá que ser desbloqueado, e quando a tampa saltar pode saltar com muita violência. O mesmo em relação às pensões.

Teria sido possível controlar as contas públicas sem cortar nas pensões e nos salários?

O que estava previsto no memorando de entendimento apontava para cenários em que isso seria possível.

Um dos textos deste novo livro do Fórum cita um membro do governo não identificado que admite que houve muitas medidas que não estavam na versão inicial do memorando e que foram inscritas porque faziam parte de uma agenda do governo. Houve falta de transparência do governo?

Houve falta de transparência e de debate público. Essa citação mostra a ilusão de que se poderia aproveitar uma oportunidade para cumprir um programa ideológico que não foi votado.

O país financia-se hoje a taxas historicamente baixas. É um mérito de Passos Coelho ou de Mário Draghi?

É sobretudo de Mário Draghi. Não havia muito a fazer nessa matéria. Aliás, no que respeita à estabilização do sistema financeiro e a uma parte da gestão da dívida, estava muito dependente de decisões que fossem tomadas ao nível das instituições da União Europeia. Outras decisões vão ser tomadas e os cenários vão ainda alterar-se no que respeita à dívida. A história ainda agora vai no início.

Acredita que a dívida vai subir muito mais?

Vai continuar a subir e acredito que vai ter de ser reestruturada, negociada, de alguma forma, porque não há memória de nenhum país ter pago dívidas nestes montantes. As instituições da União Europeia vão ter de resolver esse problema sem dramatismos. Aliás, escusávamos era de ter passado estas "passas do Algarve" para lá chegar, mas lá vamos chegar, não tenho nenhuma dúvida, porque a dívida simplesmente não é pagável.

Acredita que um governo liderado por António Costa, vai puxar por essa agenda?

Vai ter de puxar. Qualquer governo vai ter de puxar por essa agenda. O que a questão da dívida tem de mais negativo é a ideia de que é possível os países viverem sem contrair dívida. Isso não existe. Todos os países do mundo contraem dívida. Aliás nós, durante mais de 15 anos, fomos estimulados a contrair dívida, não só ao nível dos países como ao nível privado. Agora estamos num ciclo que tudo isso é avaliado muito negativamente e chegaremos a um ponto de equilíbrio. Não é sustentável viver apenas de crédito mas não é possível fazer o desenvolvimento de um país sem crédito. Criou-se uma imagem muito negativa do investimento público, como se todo o investimento público fosse negativo, e nós não vamos poder ter desenvolvimento sem investimento público, vai ser absolutamente essencial. Fala-se muito nos estádios de futebol, esquecendo investimentos importantíssimos que foram feitos e outros que não chegaram a ser feitos, como o do Alqueva, e o do Porto de Sines, por exemplo. São dois grandes projetos estratégicos para o desenvolvimento do país. É muito importante que um dos compromissos para futuros governos seja o de saber quais são os grandes projetos de investimento público necessários e estratégicos para o desenvolvimento do país. Não é ficar a recordar se fizemos muitas ou poucas rotundas, muitos ou poucos estádios de futebol. É dizer o que vamos querer fazer daqui para o futuro. Nos países no norte da Europa fazem-se coligações governativas com base em compromissos desta natureza de 10, 15 ou 20 anos.

A nossa cultura política tem mostrado que esse tipo de entendimento é muito difícil.

A cultura política também não existe. O que existe são regras e as regras condicionam os comportamentos. É muito bom que os comportamentos políticos se alterem com novas regras de prestação de contas, de transparência, de exigência e de planificação. É verdade que se fizeram investimentos públicos errados. Mas gosto de recordar os enormes investimentos públicos que foram feitos de que todos hoje nos podemos orgulhar: hospitais, escolas, universidades, pontes, até as rodovias, que hoje são muito criticadas mas que foram muito importantes para algumas localidades. Na área da energia aquilo que se investiu é absolutamente extraordinário e pode ajudar a mudar o paradigma energético do país. Tenho pena que alguns projetos tenham sido abandonados de uma forma totalmente irresponsável, como o caso da alta velocidade.

Mas reconhece também que algum exagero nesses investimentos criou condições para a situação que vivemos nestes três anos?

Não. Acho que é pura ideologia. Já ouvimos este governo recuperar a ideia do TGV, e fatalmente vão ter de recuperar outras ideias porque nenhum país se desenvolve e cresce sem investimento público.

O memorando impôs medidas específicas, em sectores específicos. O da Educação é um dos que, certamente, terá acompanhado com mais atenção. Como compara a educação que temos hoje com a que tínhamos antes da chegada da troika?

Há uma importante fatia do corte na área da educação que é tributária do que foi feito na Administração Pública: congelamentos das progressões, cortes nos salários. No que respeita aos privados foi feito exatamente o contrário do que estava previsto. Estava previsto reduzir a despesa e foi aumentada a despesa com os privados. Alterou-se a regulação do Estado no sector privado, retiraram-se todos os mecanismos de controlo e de prestação de contas, conferindo-se às instituições privadas uma autonomia total. Às escolas públicas, pelo contrário, foi retirada autonomia. O governo herdou um mecanismo de expansão do ensino profissional e destruiu isso para tentar montar um sistema, que, felizmente para o país, não está a conseguir implementar, ao inventar o ensino vocacional, que mais não é do que aumentar o tempo das crianças e dos jovens nas empresas onde deviam estar pouco tempo a fazer estágio. Mas o mais grave de tudo, e que contraria o que estava previsto no memorando, foi terem acabado com o Programa Novas Oportunidades sem o substituir por nada. Fizeram pior ainda porque aprovaram uma lei que proíbe as escolas de admitir alunos com mais de 20 anos. Um jovem com 20 anos que, por acidentes de percurso, não tenha ainda concluído o secundário, não tem a possibilidade de o concluir. Não pode ir para as ofertas para adultos porque elas não existem, porque o Programa Novas Oportunidades acabou.

A lógica que o PS inaugurou de apresentar propostas contabilizadas, com medidas concretas, deve passar a imperar na política portuguesa?

Não sei se deve imperar mas deve fazer parte. Não deve esgotar-se aí a política, há muitas medidas que não são passíveis de definição de metas e de objetivos. Há outras que podem e devem sê-lo. Agora há uma nuance que me causa alguma inquietação. É quando se submete a política à economia. A política deve comandar, e portanto preferia o exercício ao contrário, que é um político pedir a um grupo de economistas: "vejam a viabilidade económica deste pacote de medidas". Não gosto de política escondida atrás de cenários macroeconómicos. Gosto da política explicitada, quais são os nossos objetivos e o que queremos fazer.

Já referimos a questão da dívida. Acredita que António Costa vai avançar com uma agenda para restruturação?

Acredito que vai fazer alguma coisa na frente europeia para que o problema da dívida seja resolvido em moldes diferentes dos que estão estabelecidos.

António Costa vai colocar isso de forma clara durante a campanha eleitoral?

Vai pô-lo de certeza. Se há traço que o caracteriza é essa clareza e frontalidade.

O PS não devia ter, por esta altura, uma vantagem maior nas sondagens?

Não sei, ainda é muito cedo. Se me pergunta o que é que eu considero desejável eu digo-lhe que considero desejável um maior distanciamento em relação à coligação mas falta muito tempo.

Depois das legislativas teremos as presidenciais. Sem Guterres, sem Vitorino, sem Gama, o PS não vai ter mesmo outro remédio senão apoiar Sampaio da Nóvoa?

É muito cedo para as presidenciais. O Sampaio da Nóvoa lançou a sua candidatura porque não tem notoriedade e precisa de a ganhar. As eleições são definidas por escolhas e neste momento não temos grandes escolhas. Temos o Sampaio da Nóvoa como candidato mas não temos ainda nenhuma escolha para fazer.

Mas seria preferível um nome como Jaime Gama ou António Vitorino?

Não me vou pronunciar sobre isso. É muito cedo.

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