A média do barril de petróleo Brent, um dos indicadores basilares do cenário macroeconómico da nova proposta de Orçamento do Estado (OE2022), vai numa média de 98,6 dólares desde o começo deste ano até ao dia de ontem (cerca de 91 euros), segundo cálculos do Dinheiro Vivo com base nas cotações dos contratos de futuros até julho deste ano.
No entanto, o ministro das Finanças, Fernando Medina, entregou ontem a sua primeira proposta de OE (segunda do governo para este ano porque a outra foi chumbada) onde assume que a média do Brent até ao final do ano só vai subir mais seis dólares (5,5 euros) face àquele valor.
Ou seja, esta hipótese média de base em que assenta o novo Orçamento só deve aumentar mais 6% face à média calculada ontem. Já a realidade diz-nos que o barril de petróleo disparou quase 40% desde o começo do ano, negociando agora nos 108,7 dólares. O risco aqui latente parece ser grande.
Na apresentação da proposta de OE2022, Medina não se furtou a falar da "elevada incerteza" e dos "riscos" que rodeiam o seu cenário dos próximos meses (até dezembro) e que, só por isso, podem dificultar bastante a execução orçamental, tornando mesmo obsoletas algumas projeções.
É o caso do crescimento económico, da inflação, do fulgor do turismo, do nível das receitas fiscais e da despesa social e de contenção dos custos da energia que está programada, que no fim das contas, dão o défice almejado pelo governo de 1,9% do produto interno bruto (PIB) no final deste ano e permitem reduzir a dívida de forma musculada (pelo segundo ano consecutivo) cortando mais sete pontos percentuais no seu peso em relação ao PIB. Para 120,7% do PIB.
Se a "incerteza elevada" se materializar para o pior lado, tudo pode ficar comprometido. Se a guerra da Rússia contra a Ucrânia se prolongar ou se a situação diplomática se degradar, o preço médio do petróleo facilmente deve superar os 104,6 dólares com os quais o governo e os mercados estão a contar.
Algumas coisas positivas, lembrou o ministro
Claro que há pontos positivos nas contas públicas e na economia que ajudam a tornar este cenário menos sombrio. O ponto de partida orçamental de 2021 é mais favorável, deu uma folga ao arranque de 2022, porque o défice já ficou abaixo de 3% do PIB (fechou em 2,8%, segundo apurou o INE). Isso mesmo foi sublinhado algumas vezes pelo ministro na conferência de imprensa que decorreu no ministério, em Lisboa.
Apesar de o Banco Central Europeu (BCE) já estar, na prática, a subir juros (descontinuando programas de compra de dívida pública, por exemplo), as taxas de juro de Portugal continuam historicamente baixas. "Estão abaixo dos juros de Itália, em linha com os de Espanha e mantendo o spread [diferença] face aos níveis da Alemanha", referiu o governante.
Medina também disse que concorda com a visão do Banco de Portugal e do BCE, que "apontam para uma inflação elevada como fenómeno temporário".
Mas quando se disseca um pouco o novo orçamento e o contexto externo percebe-se que a realidade está dinâmica e imprevisível. E há sinais de que o governo está a agir para não perder esse comboio.
O ministro foi questionado sobre se, tendo em conta o galope dos acontecimentos, haverá necessidade, mais cedo do que se pensa, de fazer um OE retificativo ou suplementar. Isto sucede sempre que a despesa passa das marcas da autorização legislativa que o Parlamento vier a dar ao OE do governo.
A resposta foi perentória. "É algo que posso afastar. Não consta dos nossos cenários", seria até "insólito" pensar em tal possibilidade.
Seja como for, há sinais que levam a crer que a cada semana que passa, os alicerces orçamentais ficam mais amolgados ou atacados pela conjuntura externa agressiva.
Principais medidas de política orçamental: antes e agora
Veja-se o exemplo do chamado "quadro das principais medidas de política orçamental para 2022", que no fundo é o conjunto de medidas do lado da receita e da despesa previstas para este ano, a sua maioria em resposta às crises (pandémica e energética/alimentar).
A 28 de março, já a guerra durava há mais de um mês, o governo estimou um pacote assinalável de estímulo para este ano no valor de 3,2 mil milhões de euros (contando, claro com o inestimável contributo dos fundos europeus, mais 3 mil milhões de euros do PRR).
Ontem, apenas duas semanas e meia volvidas, o pacote de estímulo orçamental proposto ao Parlamento está avaliado em 3,7 mil milhões de euros. Mais 500 milhões de euros, um reforço de quase 16% em tão pouco tempo, o que sinaliza a gravidade e a alta velocidade dos acontecimentos.
Veja-se outro exemplo: a inflação. É um indicador de charneira, serve de farol a vários preços na economia (salários da função pública incluídos) e orienta a tomada de decisões de investimentos e as expectativas dos consumidores.
Há duas semanas, no Programa de Estabilidade ainda feito por João Leão, antecessor de Medina no cargo, a projeção era de 3,3% para 2022. Hoje, vai em 4%.
Imagine-se a frustração de muitos funcionários públicos que estão a ser aumentados com um fator de 0,9%, que era a inflação prevista no primeiro OE2022, que acabou por ser chumbado e conduziu o país para eleições antecipadas.
A atualização salarial anual de centenas de milhares de empregados públicos é quatro vezes menor (em percentagem) face ao nível em que está a inflação.
E mesmo a previsão do governo para o ano de 2022 ao nível da evolução dos preços está sob ameaça.
Tendo em conta dos dados recentes divulgados pelo INE para o período de janeiro a março deste ano, a inflação homóloga média do primeiro trimestre já vai em 4,3%. Supera já a meta do novo OE, portanto. Em todo o caso, ainda faltam nove meses para a conta final.
Retoma e emprego aguentam?
Apesar da guerra e da alta incerteza, o ministro das Finanças remete ao Parlamento um OE que pouco ou nada mexe na projeção de crescimento (a retoma será de 4,9% este ano, apenas uma décima menos do que se pensava há duas semanas e meia).
A confiança do ministro na retoma é grande. Na conferência de imprensa desta quarta-feira, Medina aludiu à força do turismo, por exemplo, isto apesar das sombras da guerra e da inflação aguda na energia que pairam no horizonte e podem por em xeque esta retoma.
"Não me venha dizer agora que há turistas a mais", brincou Fernando Medina, recordando um momento célebre e tenso, antes da pandemia, quando era presidente da câmara de Lisboa.
As Finanças projetam para 2022, inclusive, um desemprego ainda mais baixo este ano do que o calculado em outubro. Era 6,5% da população ativa em outubro passado, agora a previsão desliza para apenas 6%.
A dinâmica prevista para o emprego sai intocada destas duas semanas terríveis na Ucrânia. No PE, o governo esperava um aumento de 1,3% em 2022. O número mantém-se nesta proposta de OE. E é melhor do que no orçamento chumbado (0,8%).
"Contas certas" outra vez?
Como já se sabia, o governo considera que a crise não vai tirar Portugal dos carris da disciplina orçamental.
As "contas certas não são um adereço para os ministros das Finanças", é uma segurança para um país que tem de cumprir regras, está inserido na zona euro, mas que tem uma dívida muito elevada que precisa de reduzir nos próximos anos, avisou o ministro.
Nos agregados macroeconómicos do PIB, o quadro de Medina também parece ser mais benigno.
É certo que o maior grupo da economia, o consumo das famílias, abranda de um crescimento de 4,7% (estimado no OE de outubro) para 3,8% em 2022 (no novo cenário orçamental).
O investimento cresce bem, cerca de 7,9% em 2022, um pouco menos do que se previa em outubro (8,1%).
Mas é nas exportações que a tónica é maior, até pelo já referido efeito turismo. No OE chumbado, as vendas ao exterior iam crescer 10,3% em 2022, agora as Finanças acreditam ser possível chegar a 13,1%.
As importações também aceleram para 11,1% em 2022, muito por causa da dependência do país face a energia e matérias primas produtivas que têm de vir do estrangeiro porque Portugal não as produz.