Motoristas de TVDE "muito dificilmente" são trabalhadores independentes, diz ACT

Queixas de motoristas são "residuais", diz Inspetora-geral, Fernanda Campos.
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A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) entende que "muito dificilmente" a atividade dos motoristas das plataformas Uber, Bolt e Free Now pode ser considerada como trabalho independente ou mesmo atividade de empresário em nome individual, à luz das leis laborais.

O entendimento foi explicitado esta terça-feira em audição parlamentar pela Inspectora-geral, Fernanda Campos, chamada pelo Bloco de Esquerda a dar conta da fiscalização que é feita ao cumprimento da chamada lei Uber, o regime da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica (TVDE).

"Muito dificilmente a atividade de trabalho de motorista TVDE pode ser titulada por um contrato de prestação de serviços, dada a sua integração numa organização determinada por outrem, à qual, clarifica-se, são aplicadas as regras de presunção de laboralidade previstas no Código do Trabalho", considerou a responsável máxima da ACT.

Fernanda Campos salientou que o regime TVDE não regula matérias laborais, e que o que vale, para a entidade que fiscaliza, são as regras do Código do Trabalho, que estipulam quando se deve presumir que há uma relação de trabalho subordinada. Mas admitiu dificuldades em fazer valer a lei.

"Sem dúvidas que para estes trabalhadores e para as entidades administrativas há aqui um acréscimo de dificuldade inicial própria de uma certa desmaterialização da entidade empregadora, e da sua dificuldade em localizar os próprios trabalhadores", considerou

Segundo clarificação da ACT ao Dinheiro Vivo, não existem dados desagregados sobre ações de fiscalização no sector TVDE. No conjunto dos trabalhadores nacionais, a ACT detetou no ano passado 275 casos de falsos recibos verdes, e já outros 37 neste ano.

Na sequência das ações de fiscalização, "foram regularizados 117 trabalhadores no ano de 2020 e 20 trabalhadores no ano de 2021, convertendo os seus contratos de prestação de serviço em contrato de trabalho, e com a respetiva modificação da relação contributiva para com a Segurança Social".

Ainda segundo Fernanda Campos, nestes dois anos houve 95 participações ao Ministério Público e foram levantados 99 autos de contraordenação.

"A ACT não dispõe de dados desagregados por setor de atividade, pelo que os dados divulgados incluem também a atividade da ACT no setor de TVDE, mas não só", esclarece a entidade depois de as declarações da Inspetora-geral no parlamento, durante a manhã, terem sido interpretadas como referindo resultados de ações de fiscalização ao trabalho de motoristas TVDE.

A ACT é uma das entidades responsáveis por fiscalizar o regime de TVDE, que está em vigor desde final de 2018, e que deverá ser avaliado e revisto neste ano, ao mesmo tempo que o governo fala em regular o trabalho das plataformas digitais, numa discussão em curso com os parceiros sociais, e após a qual pretende entregar, já no final de 2022, propostas legislativas no parlamento, segundo o calendário de reformas inscritas no Plano de Recuperação e Resiliência já entregue à Comissão Europeia.

A discussão é feita num momento em que se acumulam decisões judiciais que reconhecem vínculos de trabalho entre motoristas e plataformas de transportes como a Uber, no caso recente do Reino Unido, ou entre estafetas e plataformas como a Glovo, numa recente decisão espanhola.

Contudo, o regime de TVDE não prevê esta relação direta de trabalho entre motoristas TVDE e plataformas, criando a figura do operador de TVDE, para efeitos da presunção da relação de trabalho.

Nos casos já remetidos ao Ministério Público pela ACT e que incluam situações de motoristas de TVDE, indicou Fernanda Campos, ainda não há notícia de decisões. "Daquilo que foi comunicado aos tribunais, não temos ainda decisões que nos possam dar com maior fiabilidade feedback sobre a nossa própria atuação".

Segundo a Inspetora-geral, as duas principais situações fiscalizadas pela ACT - quase sempre por iniciativa própria e perante queixas "residuais" - são a existência de falsos prestações de serviços e também o incumprimento dos tempos de trabalho e períodos de descanso. Este último, com "impacto brutal nas condições de saúde e segurança no trabalho e também na segurança rodoviária", reconheceu.

Os longos horários dos motoristas TVDE para obterem rendimento, em face de uma forte tendência de diminuição de tarifas na luta das operadoras para conquistar passageiros, têm vindo a ser denunciados por organizações de motoristas e também por sindicatos como a Fectrans, que já integra alguns motoristas TVDE entre os seus sindicalizados.

Na audição, Fernanda Campos aludiu também ao problema das tarifas, cujos limites mínimos e máximos são determinados pelas plataformas digitais.

"Estes trabalhadores terão ainda maior exposição e vulnerabilidade a situações de exploração, precariedade e às condições impostas pelas plataformas digitais de aquisição de bens e serviços, condições essas que se agravam também por força da denominada tarifa dinâmica. A prática desta tarifa poderá pôr em causa o mínimo de existência para os dadores de trabalho, os motoristas", defendeu.

O regime de TVDE prevê que "os valores das tarifas são fixados livremente entre as partes, sem prejuízo do disposto nos números seguintes, devendo os preços finais cobrir todos os custos associados ao serviço, em harmonia com as melhores práticas do sector dos transportes".

Já sobre situações de bloqueio de contas dos motoristas por determinação das plataformas digitais - em resultado da aplicação de algoritmos - a ACT sugere que lhe faltam meios para "acompanhar o fenómeno".

"Requer instrumentos de tecnologia de informação, competências, capacitação. Estamos num caminho de evolução, todos nós, e de aprendizagem. Vamos aprendendo com as nossas congéneres europeias, com os nossos parceiros, com todos, quer com instituições universitários quer com parceiros sociais sectoriais e no nosso conselho consultivo, tentando evoluir, tentando acompanhar o fenómeno", referiu.

Na audição, a Inspetora-geral da ACT reconheceu a necessidade de "um maior clarificação e densificação" da lei, e de ter em conta as decisões que estão a ser tomadas noutros Estados-membros da União Europeia, assim como de acompanhar a evolução tecnológica, ainda que não "ao ritmo das plataformas".

Esta capacidade de atualização nas tecnologias de informação, salientou, será sobretudo importante para que a ACT possa analisar "indícios de laboralidade". São estes que - nestas situações, envolvendo aplicativos digitais e algoritmos - permitem à entidade fiscalizadora concluir se está ou não perante uma falsa relação de prestação de serviços.

Alterado às 21h56 com clarificação por parte da ACT de que os resultados de fiscalização da ACT que detetaram irregularidades em 2020 e 2021 dizem respeito ao conjunto dos trabalhadores nacionais, e não apenas aos motoristas de TVDE.

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