MP já recebeu 12 queixas por recusa de pagamentos em dinheiro
O Ministério Público já recebeu 12 queixas por ter sido recusado o pagamento em dinheiro vivo de despesas feitas por clientes, uma prática que vai contra a lei vigente. Estas participações foram feitas pela Denária Portugal, associação constituída em 2023 com o objetivo de salvaguardar o direito dos consumidores de escolher notas e moedas como meio preferencial de pagamento. Só neste último mês, a associação “recebeu cerca de 20 denúncias, mais 50% do que no mês anterior”, revela Paulo Padrão, secretário-geral. E também enviou as participações ao Banco de Portugal (BdP). Comissão Europeia e BdP estão atentos ao fenómeno, que condenam.
Segundo Paulo Padrão, a maioria das queixas respeita “a lojas de restauração ou serviços similares localizados na sua maior parte em centros comerciais”. Houve também “uma participação de uma companhia aérea e de uma empresa de distribuição de energia”, aponta. Paula Padrão diz mesmo que a elétrica é “a maior em Portugal” e afirma “ter uma política de responsabilidade social avançada mas pelos vistos falha no cumprimento dos mais básicos dos direitos dos consumidores”.
Em novembro, a Denária disponibilizou um canal de contacto no seu site para que os consumidores possam reportar casos de proibição de pagamentos em dinheiro. Nessa altura, anunciou que iria reportar ao Ministério Público todas as situações denunciadas. Esta decisão surgiu na sequência de um parecer jurídico recente que indica que, de acordo com a Lei das Condições Gerais dos Contratos (art.º 34-A), a recusa de aceitar pagamentos em numerário configura uma contra-ordenação social. De acordo com Paulo Padrão, as queixas junto da Denária têm vindo a aumentar devido à comunicação do canal de denúncia nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais, mas também pelo boca-a-boca.
Questionado sobre esta matéria pelo DN, o BdP reconhece que tem conhecimento de impedimentos de pagamento com dinheiro físico, e estes têm sido acompanhados e desencorajados, afirma. O supervisor esclarece que “a aceitação de notas e moedas em euros como meio de pagamento deve ser a regra nas transações de qualquer natureza”. Como sublinha, “o credor tem o dever de aceitar qualquer tipo de nota ou moeda, não podendo, regra geral, recusá-la”.
O enquadramento legal é claro, mas falta um quadro sancionatório. A instituição liderada por Mário Centeno lembra, à luz das orientações da União Europeia, as recusas de notas e moedas em euros como meio de pagamento apenas podem ser fundadas na boa-fé, ou seja, uma desproporcionalidade entre o valor da nota face ao montante a pagar, ou por acordo das partes em usar outro meio de liquidação. Este é o entendimento da Recomendação da Comissão Europeia, de 22 de março de 2010, sobre o alcance e consequências do curso legal das notas e moedas em euros. Há ainda que ter em conta que o curso legal e o poder liberatório das notas e moedas de euro, ou seja, a capacidade de serem utilizadas como meio de pagamento, resultam do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do Regulamento CE n.º 974/98 do Concelho, de 3 de maio de 1998.
No entanto, estas normas não estabelecem sanções relativas à recusa de aceitação de dinheiro vivo para satisfação de um crédito. Mas, realça o BdP, “nos termos do Código Civil Português, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, podendo inclusive o credor incorrer em mora, quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida”.
Por sua vez, fonte oficial da Comissão Europeia revela que este organismo está consciente da existência de “preocupações crescentes entre o público relativamente ao declínio da aceitação e do acesso ao numerário em partes da zona euro”. A instituição da União Europeia quer que “os Estados-membros monitorizem a aceitação de numerário no seu território e tomem medidas corretivas sempre que as recusas de numerário se tornem generalizadas”. Isto numa altura em que se discute o lançamento do euro digital.
Em julho de 2023, a Comissão Europeia avançou com uma proposta legislativa para a criação do euro digital. Em simultâneo, apresentou uma proposta que visa salvaguardar o papel do numerário, garantir que é amplamente aceite como meio de pagamento e que permanece facilmente acessível para as pessoas e as empresas em toda a área do euro. As duas normas estão atualmente em discussão no Conselho e Parlamento Europeu. Mas “o euro digital não foi concebido para substituir o dinheiro”, antes “visa complementar o numerário em euros no contexto da mudança das preferências de pagamento para os meios digitais”, diz a Comissão Europeia.