Mário Campolargo: “Se não aprendermos a trabalhar com a inteligência artificial, ficaremos fora do processo económico”

Mário Campolargo, antigo secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa, fala do impacto da regulação europeia, da posição dos Estados Unidos na corrida tecnológica e do desafio da inclusão digital.
Mário Campolargo: “Se não aprendermos a trabalhar com a inteligência artificial, ficaremos fora do processo económico”
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As prioridades europeias para garantir que a digitalização e utilização da inteligência artificial (IA) promovem uma economia mais inclusiva e também mais sustentável, são a aposta na “literacia, investimento na economia e na sociedade, e infraestrutura”. Entrevista a Mário Campolargo, numa altura em que a China abalou o mundo da IA com o tsunami DeepSeek, o que deverá provocar ondas de choque em vários continentes.


Agora que Donald Trump foi empossado presidente dos Estados Unidos, como vê a relação da Europa com EUA e, na corrida à liderança digital?

Acho que Trump, enquanto presidente dos Estados Unidos da América, introduz um fator diferente nas relações que existiam entre estes blocos, mas algumas das coisas, em particular no digital, manter-se-ão. Como uma Europa que é assente num digital com propósito, em linha com os Direitos Humanos, em que defendemos os princípios éticos, com um conjunto de princípios e de valores europeus que devem informar a utilização do digital. Reforçar este aspeto não é menorizar o aspeto económico. Nós temos de criar valor com o digital, com a inteligência artificial, com a analítica de dados, com a cloud, com a Internet das Coisas, com todo o conjunto de tecnologias que nos possam permitir avançar e consolidar economicamente o bloco europeu, que é tão importante. A China tem uma aproximação diferente da Europa, muito mais baseada no interesse do Estado – talvez porque o Estado, e o interesse do Estado, se sobrepõem aos direitos dos cidadãos. Já os Estados Unidos têm uma dimensão económica muito mais visível e ela é exponencialmente acelerada com a chegada de Trump, na medida em que há, no meu entender, uma certa mistura não desejável entre os interesses puramente económicos e os interesses políticos. Se eu entender a política como a defesa da sociedade enquanto um todo, ela tem de olhar não só para os aspetos económicos, mas também para a dimensão social, cultural e histórica até. E o que me parece é que o aparecimento dos líderes, em particular das grandes plataformas digitais, numa posição proeminente e que pode ser a médio prazo determinante para as políticas dos Estados Unidos, pode não estar tanto em linha com o ponto de vista da Europa e criar altas dificuldades no relacionamento.


A Europa está a fazer um investimento muito grande na regulação da IA, através do AI Act. Por seu lado, nos Estados Unidos, por aquilo que se entende com esta administração Trump, a tendência é para que haja uma liberdade maior – ou seja, primeiro a inovação e depois a regulamentação. Como é que isso pode comprometer competitivamente a Europa face àquilo que é a inovação e o desenvolvimento da IA?

Acho que os Estados Unidos sempre foram caracterizados por essa prioridade dada à inovação, sendo que a regulação aparece numa fase posterior. A Europa tem, em alguns casos, avançado com a regulação e isso, em termos conceptuais, alguns defenderão que é contrário a um desenvolvimento económico acelerado, porque a inovação per se traz esse desenvolvimento. Como tudo na vida, acho que temos de ter algum equilíbrio. É verdade que, por exemplo, com o RGPD, a Europa deu um passo importante na proteção dos dados. Os Estados Unidos e muitas outras regiões do mundo, ao princípio, não valorizaram tanto isso. Mas, hoje em dia, começamos a ver em determinados Estados, nos Estados Unidos e em outras partes, globalmente falando, que começam a perceber a importância da proteção dos dados e têm, de alguma maneira, sob o ponto de vista da privacidade, adotado alguns princípios semelhantes aos do RGPD. De facto, quero dizer com isto que o AI Act vai ser importante, porque não é possível que uma sociedade, historicamente falando, num prazo alargado, não faça uma reflexão mais profunda sobre esta dinâmica que começou com as grandes plataformas de redes sociais e agora é exponencialmente impactada pela IA.


O que é que isto desafia?

Desafia o próprio ser, a noção do próprio ser. O que é que o homem quer ser? Qual é o espaço que lhe fica enquanto humano?

E o espaço que a máquina vai ocupar.

Sim. Acredito que vai haver seguramente uma coexistência em que o pensamento humano já não é meramente uma reflexão do ser humano, mas passa a ser uma reflexão condicionada – espero que no bom sentido –, pela própria máquina que foi criada. E é por isso que quando nós falamos, por exemplo, na utilização da IA na área dos recursos humanos, temos de pensar que pode, efetivamente, substituir alguns empregos; vai criar outros mas, acima de tudo, o que é importante é que se nós, enquanto recurso humano, se não aprendemos a trabalhar com a IA, ficaremos fora do processo económico.


O que nos leva à questão da inclusão e das desigualdades. Como é que conseguimos garantir que a digitalização europeia, neste caso a utilização da IA, promove uma economia mais inclusiva e sustentável?

Com literacia. Se há alguma prioridade, tem de ser a literacia. Temos de criar a capacidade, desde a escola primária, ao longo de toda a vida, de perceber o que o digital nos traz como vantagem. É absolutamente fundamental. Infelizmente, muitas vezes ouvimos pessoas jovens que, por terem uma conta numa rede social, julgam que já estão suficientemente capacitadas digitalmente. O que não percebem é que, em muitos casos, não estão a aproveitar as ferramentas digitais, estão a ser aproveitados pelas ferramentas digitais, que estabelecem o perfil da pessoa e que o utilizam, diria, no melhor dos casos, para vendas. Aquilo que é importante é que saibamos, sim, aproveitar todas as oportunidades, que são enormes.

Como as startups que estão neste momento a ser criadas utilizando o digital e a IA?

Sim, e as oportunidades aa IA que também entra definitivamente nos territórios para que possamos gerir melhor as nossas cidades, os nossos territórios. A IA que, no meio fabril, permite criar gémeos digitais e que permite fazer operações e simular as nossas políticas. Políticas no sentido económico da palavra, políticas de gestão de recursos humanos, de recursos materiais, o melhor possível. A utilização da IA no apoio à decisão no campo médico. A IA no apoio à cibersegurança ou à proteção da sociedade civil. Tudo isso é importante, mas implica que haja pessoas capazes de a utilizar num processo produtivo ou num processo social e que a utilizem de forma ética. Portanto, literacia é fundamental e depois temos de ajudar o tecido económico a crescer. Por isso temos as testbeds, temos as agendas mobilizadoras em Portugal, são tudo maneiras de preparar o tecido industrial para utilizar, em seu proveito, o digital e em particular a IA.


E há ainda um terceiro ponto: a Estratégia Nacional para a Conectividade pretende reduzir aqui também as assimetrias regionais em Portugal. Como vê o papel das políticas europeias de ajuda a países como Portugal a acelerar a sua infraestrutura digital? Seria esta uma terceira componente, a infraestrutura?

Sim. Literacia, investimento na economia e na sociedade, e depois infraestrutura, que é fundamental. A infraestrutura, neste momento, podemos dividi-la em dois aspetos fundamentais. Aquela que é uma infraestrutura de base de conectividade, e aí as zonas brancas em Portugal, através do concurso que foi lançado quando eu estava no Governo, para as cobrirmos, porque não podemos ter um país a várias velocidades, não podemos ter o interior e a zona mais da orla marítima com duas infraestruturas diferentes. Por isso, quando há uma falha de mercado, tem de haver investimento da parte do Estado para cobrir essas Zonas. Isso, aliás, está muito em linha com os objetivos da agenda digital a nível europeu, que prevê precisamente na infraestrutura ultrapassar esses gaps. Mas depois temos o aspeto da cloud, de computação avançada, e aí temos de trabalhar para que as nossas empresas utilizem cada vez mais a cloud, utilizem capacidade computacional porque não há nenhum setor de atividade que hoje em dia não tenha uma componente digital evidente, desde a administração pública até à pequena empresa que pretende vender para fora do país, ou à própria gestão da produção, que é eminentemente digital. E é por isso que, para além do Deucalion [o supercomputador português que vem garantir computação de alto desempenho à academia, empresas e Administração Pública], que é um investimento muito grande e se deve reforçar com uma capacidade, se pensarmos em inteligência artificial na área dos GPUs, para que seja mais adequada essa formação, mas também para que empresas de média e larga capacidade em Portugal apostem no digital. Portanto, esta dualidade entre infraestrutura de base 5G, em todo o país, e a utilização da cloud e da Internet das Coisas, para melhorarmos o desafio industrial, é absolutamente fundamental e está obviamente em linha com os objetivos da década digital.

O setor tecnológico é conhecido pelo consumo energético elevado, ainda mais agora com o desenvolvimento acelerado da IA. Como é que se pode equilibrar a inovação e a sustentabilidade num mundo digital em crescimento como este?

Diria que, talvez, de duas maneiras. Primeiro, fazendo recurso a fontes de energia renováveis. E Portugal tem uma particular responsabilidade, mas também demonstrou alguma capacidade ao longo deste tempo na utilização da energia solar e da energia eólica, nomeadamente para garantir que grandes centros de dados possam ter energia verde e sustentável. Depois, do lado do consumo relativo ao digital, há um desafio enorme: por exemplo, a IA é reconhecidamente resource-hungry – consome muita energia. E, se calhar, consome porque estamos nos princípios de uma revolução ao nível da própria tecnologia. A inspiração do lado bio, que é a maneira como o nosso cérebro funciona e que é de muito baixo consumo energético, é uma inspiração para o futuro. Não é exatamente aquilo que nós temos agora.

O professor António Damásio fala muito sobre isso.

Fala, exatamente. Portanto, o que é importante é percebermos que não podemos dar um passo para tecnologias bio-inspired sem, se calhar, passarmos por esta fase em que uma tecnologia mais bruta, mais normal, nos vai mostrar a importância da IA. E são processos que caminham em paralelo, ou seja, nós demonstramos os benefícios – e, enfim, também tomamos consciência dos riscos – e depois, tecnologicamente, vamos perceber como é a sustentabilidade no longo prazo. Isto é exatamente como qualquer outra revolução industrial. Os automóveis, no princípio do meu tempo, gastavam 12 litros aos 100/km e eram pequeninos, não tinham cintos de segurança, não tinham airbags e achávamos que eram o suprassumo. Hoje, os carros consomem metade, têm cintos de segurança e têm airbags.


Falando em segurança, no digital é muito importante também chamar a atenção, por exemplo, para a cibersegurança e a privacidade...

Sem dúvida. Não podemos aceitar uma sociedade completamente dependente do digital sem percebermos como é que endereçamos aspetos que, não sendo aquilo que se chamam funcionais, ou seja, que servem para a função específica da app, ou do programa, são absolutamente fundamentais como a cibersegurança e a privacidade. E é por isso que qualquer sistema que ponhamos ao serviço da sociedade, ao serviço das pessoas, deve garantir que é, bom, é user friendly (amigo do utilizador), mas tem de garantir a privacidade e a segurança, que são fundamentais. E é neste aspeto que a Europa tem uma posição de liderança. E o consumidor está preparado para exigir.

Se uma ferramenta não tiver boa usabilidade, o consumidor, por norma, descarta logo. Mas a questão da privacidade dos seus dados e da segurança não é assim tão visível.

A perceção dos impactos de segurança não é tão evidente, ela acontece quando a pessoa cai no logro do “olá pai, olá mãe”, quando as suas credenciais são roubadas, quando o seu banco chamar a atenção de que alguém lhe clonou um cartão e está a levantar o seu dinheiro. Portanto, não é tão imediato e voltamos à questão da literacia. Como em todas as inovações, vamos focar-nos nas oportunidades, mas vamos consciencializar a sociedade dos riscos e prepará-la para uma utilização saudável dessa tecnologia.


O primeiro-ministro anunciou, durante a Web Summit, um LLM em português de Portugal, justamente para garantir a soberania da língua portuguesa. Concorda com a perspetiva de Luís Montenegro e a importância de criar este modelo de IA?

Em qualquer sistema de IA temos dois aspetos fundamentais: o algoritmo e os dados sobre os quais esse algoritmo é ensinado. Como é evidente, se tivermos um mau algoritmo ou maus dados, dados que não sejam curados, o resultado é sempre negativo. Vou pôr de lado os aspetos dos algoritmos, que também são importantes, mas do lado dos dados, a utilização de Large Language Models (LLM), neste caso concreto, que são muito treinados em língua inglesa e com recurso a todos os dados que existem na internet a nível global, introduz vieses, por exemplo, relacionados com o homem branco, com os idosos, um viés negativo com a mulher, com os imigrantes, com as pessoas que não têm capacidade económica. E, portanto, sempre que pensamos na utilização de um LLM numa empresa ou num país, é importante treinarmos esse LLM com um conjunto de dados que são relevantes ou para a empresa ou para o país. Fazer esse trabalho em língua portuguesa de Portugal e contextualizá-lo numa sociedade e num conjunto de dados históricos e culturais, tem com certeza algum valor. O desafio que se coloca, neste contexto, é como se prolongam estas coisas. É importante que não lancemos apenas uma ideia, mas que essa ideia seja perene, ou seja, que fique alicerçada também no mercado e que possa funcionar para o futuro. Senão, será uma experiência muito interessante, mas que ficará localizada no tempo ou um espaço.

E como é que a Administração Pública pode beneficiar de um modelo de IA como este?

Da mesma maneira que, como eu explico, qualquer empresa tem de treinar os modelos de IA para o seu contexto, também na Administração Pública isso é importante. Mas queria também chamar a atenção que a IA não se resume a LLMs. Ou seja, quando quero ajudar o meu Serviço Nacional de Saúde a detetar precocemente doenças, não preciso de utilizar LLMS, mas sim tecnologias de visualização e identificação de comparação de imagens. Os LLMs têm uma visibilidade enorme junto do público: dizem que quase todos hoje estamos familiarizados com o ChatGPT ou com o Gemini ou com outras soluções, mas quando faço uma utilização mais económica, industrial, ou na área da Administração Pública, tenho de utilizar eventualmente outras tecnologias associadas também à IA. Muitos casos resolvem-se com aquilo a que se chama analítica de dados, sem introduzir necessariamente o nível mais complicado da IA.

Pela sua experiência enquanto secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa, qual a recetividade dos funcionários públicos à introdução da IA no seu local de trabalho?

Lembro-me que enquanto secretário de Estado tivemos a oportunidade de lançar a primeira assistente virtual baseada em IA. Aliás, baseada no ChatGPT, devidamente customizado e treinado, para a Chave Móvel Digital. E fizemo-lo por duas razões importantes: primeiro porque queríamos aumentar a utilização da Chave Móvel Digital, que é absolutamente fundamental para garantir a identidade da pessoa no mundo digital, na sua relação com os bancos, mas também com a Administração Pública; e depois porque era importante mostrar que a IA, através da utilização do português corrente, de linguagem natural, podia permitir uma interação mais fácil entre o cidadão e a Administração Pública – e acho que foi um elemento extremamente inovador que introduzimos nessa altura. Quando falamos de manutenção preditiva de infraestruturas, como estradas ou pontes, com a utilização ou não de sensores inteligentes, ou quando fazemos a gestão de tráfego em tempo real, tudo isto são utilizações possíveis de IA que estão no corpo da Administração Pública. Portanto, acho que a Administração Pública está sensível, pode é não ter muitas vezes a competência e também o tempo e o investimento que é necessário para ganharmos escala com a utilização da IA. E esse é o grande desafio: quando fazemos um plano estratégico para um determinado país, temos de pensar que é preciso investir em literacia. E depois, ao mesmo tempo, investimos em casos concretos para que as pessoas possam ter uma perceção clara.

Do ponto de vista da formação, como podem governos e instituições trabalhar em conjunto para preparar uma força de trabalho para o futuro?

Acho que o principal é investindo desde a escola primária. Ou seja, hoje em dia já temos a informática em todas as escolas, temos projetos que me parecem particularmente importantes aos quais eu, enquanto secretário de Estado, dei muita atenção. Por exemplo, o pensamento computacional. Fazer com que as crianças, desde a escola, comecem, obviamente, a aprender as línguas mais clássicas, o português, a matemática, a cultura, a geografia, mas, ao mesmo tempo, a introduzir também um pensamento computacional.

Depois, como estas questões do digital também ficam muito estereotipadas para os rapazes, investir também na atração de raparigas para o domínio do digital. Não é necessariamente diferenciar as raparigas, mas é criar uma uniformidade nas quais os jovens rapazes e raparigas se juntem, na perceção de que o digital é o novo normal para o futuro.


Ultrapassar desigualdades.

Ultrapassar desigualdades de género, neste caso, e de outros tipos. Depois da escola temos uma formação superior, cada vez mais importante. Mas a formação superior não devemos limitar apenas à universidade, porque ela é ao longo de toda a vida.

Foi convidado agora pela Universidade de Aveiro para criar uma cátedra em IA. O propósito é o de criar aqui também uma relação entre aquilo que é o ensino superior, a capacitação destes alunos e uma ligação real às empresas, à indústria, ao mercado?

Sim, no fundo vejo esta cátedra como uma plataforma para especialistas, e todas as outras partes interessadas, discutam as implicações sociais e para que, ao mesmo tempo, se encoraje o desenvolvimento ético e humanístico de aplicações em vários domínios. Neste momento há um contexto muito acelerado de desenvolvimento da IA a nível global. A ideia da Universidade e deste convite é criar, precisamente, essa plataforma em que possamos trocar ideias, perceber como é que, de alguma maneira, podemos encorajar o desenvolvimento e a aplicação da IA nas várias áreas, sob perspetiva humanista. Não estamos apenas a falar em pessoas da IA e da tecnologia, têm de vir da computação, dos dados, juristas, especialistas em filosofia, em ética, pessoas das ciências sociais, cientistas do comportamento e, ao mesmo tempo, fornecedores de tecnologias de IA, para que numa plataforma conjunta possamos encontrar respostas para algumas destas dificuldades. Por exemplo, como é que uma PME pode utilizar a IA ou como é que o AI Act pode ser aplicado num determinado país? Se tivermos sucesso na criação desta cátedra, teremos um instrumento que poderá, de alguma maneira, ajudar Portugal a integrar a IA no tecido económico e social e também ser parte de redes internacionais, nomeadamente europeias, nesta área da utilização da IA.


Se me permite, lanço-lhe já aqui um primeiro desafio, que não será fácil: como é que se pode garantir que as PME não ficam para trás neste processo de transformação digital a que estamos a assistir, nomeadamente até com a introdução da IA?

Há aqui dois aspetos: há PME e startups que podem querer utilizar a IA ou desenvolver sistemas de IA; e há outras que são utilizadores de IA. Como primeira mensagem, é importante que em qualquer empresa, pequena, média ou mesmo grande, o digital e, em particular, a IA sejam usados estrategicamente. Ou seja, a mera utilização de um pequeno sistema, de uma pequena ferramenta no contexto da empresa, pode parecer que traz ganhos e dividendos e pode trazer-nos a curto prazo, mas como hoje olhamos para a sustentabilidade das nossas práticas, olhamos para o valor social das nossas empresas, as empresas têm de pôr estrategicamente a IA e o digital ao nível do seu topo de hierarquia. E depois é fazer escolhas, não pela nova tecnologia que aparece, mas o que é preciso para alcançar o meu objetivo comercial, empresarial, industrial, e adequar as escolhas das ferramentas ao meu propósito e não o contrário. E essa é uma reflexão que tem de envolver muitas pessoas dentro da empresa, tem de envolver os departamentos técnicos, para perceber qual é a melhor solução, e tem que depois olhar para os departamentos jurídicos e locais para perceber como é que a utilização disso vai ser feita, nomeadamente quando estamos a servir o cidadão ou quando estamos em áreas críticas como a área da saúde, como da energia e outras.


O papel do Estado aí, sem dúvida, também tem uma importância muito grande, até porque a digitalização dos serviços públicos tem sido uma prioridade. Olhou com preocupação, no início do mandato deste Governo, de Luís Montenegro, para a exoneração do Presidente da Agência para a Modernização Administrativa (AMA), João Dias, responsável debaixo da sua tutela, enquanto secretário de Estado, pela autenticação eletrónica do cartão de cidadão e pelo Simplex?

Não gostaria de fazer muitos comentários sobre as tomadas de posição deste Governo que, legalmente falando, são seguramente garantidas. Mas aquilo que posso dizer é que a Agência para a Modernização tinha implementado um programa muito ambicioso, sob a minha tutela, e, acima de tudo, implementava aquilo que eu chamava de uma política centrada no cidadão. No fim do mandato, apresentámos aquilo que seria a nova marca da Administração Pública, a que chamávamos cidadão. Essa marca é muito importante porque já temos a Loja de Cidadão, já temos o Espaço Cidadão e poderíamos ter a App de Cidadão. Portanto, a marca seria cidadão e não outra. Vejo que este Governo, enfim, não aproveitou essa ideia e focou-se no gov.pt. Acho que aqui há uma lógica que é evidente. A nossa lógica era a centralidade do cidadão; e o gov.pt põe, obviamente, o foco no gov, que é a Administração. Provavelmente, no imediato, não se notará muita diferença, mas acho que há um aspeto de perceção absolutamente fundamental: é que se a minha marca para um cidadão for cidadão, tudo é central, tudo é focado na centralidade do cidadão. Se deixar de ter essa lógica muito presente, posso passar a focar-me nos interesses da Administração e não do cidadão. Quando nós conseguimos a renovação automática da carta de condução, quando conseguimos que os nossos cidadãos pudessem, de alguma maneira, obter os descontos das farmácias que tinham a ver com a sua situação económica, quando os jovens que estavam grávidos podiam ter automaticamente o seu apoio, quando nós investimos muito no cartão do cidadão, tudo isso tem a ver com o facilitar a centralidade do cidadão. É, aliás, uma tendência ao nível europeu, se não mundial, na qual Portugal tem algumas responsabilidades, quer ao nível europeu, porque é um dos países mais desenvolvidos na área digital da Administração Pública, quer ao nível mundial. A AMA tinha esse desígnio, tinha esse foco muito importante, espero que o continue a ter. Mas acho que o que é importante é garantirmos que a Administração Pública entende que é necessário o cidadão e não o contrário.

Como é que imagina o futuro da Administração Pública europeia em 2030?

Uma Administração sempre e cada vez mais centrada no cidadão, que utiliza a tecnologia para estabelecer serviços cada vez mais confiáveis, cada vez mais seguros e cada vez mais disponibilizados.

E qual é que vai ser o maior desafio?

É garantir a interoperabilidade entre todos os sistemas da Administração Pública. Não há a noção de uma Europa como espaço comum, que não passe por termos uma interoperação dos vários sistemas. Ou seja, quando viajo, quero que a minha carteira de identificação digital seja reconhecida em outros países. Quando vou a um hospital, quero que os dados que me são relevantes sejam partilhados com o hospital onde eu estou a ser eventualmente tratado, com as medidas e precauções, ou seja, utilizando o espaço de dados da saúde garantindo a privacidade. Quando quero abrir um negócio num outro país, possa ter ao meu dispor os serviços digitais que interacionam entre a Administração Pública do meu país de origem e a Administração Pública onde eu estou. Ou seja, garantirmos um mercado único digital. De facto, nós hoje ainda chamamos mercado único digital, porque ainda estamos a criar esta parte digital, mas no fundo daqui a uns anos o que nós queremos é ter um mercado único que é, por definição, digital.

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