Confesso que não entendo a paixão pela dessalinização - uma solução demasiado cara e financeiramente insustentável, para combater a escassez de água e a seca. Uma central de dessalinização troca energia por água potável, e nós, além de não termos água, também não temos energia. Estamos a substituir o problema da escassez de água por outro problema, para o qual não temos resposta. A paixão pela dessalinização torna-se ainda mais incompreensível quando existe uma outra solução simples, usada por vários países, acessível e financeiramente sustentável (ou seja, com baixo custo de manutenção): o transvase, assente no reforço das bacias de retenção.
Tudo indica que a dessalinização será mais um mecanismo de exploração do Estado, visando obtenção de rendas. Construir obras grandiosas e altamente dispendiosas, quando existem alternativas mais viáveis, é um desperdício. Aqui, o ato de "sacar" rendas por parte do governo será mais fácil do que o costume, já que o propósito do saque é virtuoso.
De facto, precisamos de grande quantidade de energia para retirar a água do mar, purificá-la, remover o sal e bombeá-la para a área de consumo (residencial, agrícola ou industrial), além de ainda ter de devolver a salmoura ao mar. Com a dessalinização, é sempre a bombar. Mesmos os seus defensores indicam se trata de um processo caro, apenas suportável para o consumo doméstico e em áreas próximas da central.
Em termos de investimento inicial para as autoestradas da água (como se chama ao plano de transvase e reforço das bacias de retenção) já existem números, sendo grande parte elegível para os fundos internacionais de desenvolvimento. Acima de tudo, como o investimento é modular, é possível ir aprendendo com o que vai sendo feito, mitigando o risco.
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Espanha e Israel, que têm áreas profundamente áridas, o que lhes deixa poucas alternativas, apostaram nos transvases de rios há mais de 50 anos. A dessalinização nesses países (e na generalidade dos países que a defendem) surgiu depois, quando o transvase e o reforço das bacias de retenção já não era suficiente.
Espanha estabeleceu sistemas de interligação entre rios na década de 1960, embora os estudos sobre transvase do Tejo tenham começado em 1902!
Já Israel aproveita as águas dos rios e lagos através de uma grande infraestrutura construída entre 1953 e 1964. O Kinneret-Negev Conduit é a principal infraestrutura hídrica de Israel, que consiste num sistema de gigantes canais, reservatórios e estações de bombeamento em larga escala. O objetivo é transvasar a água do Norte de Israel para o Sul e para as áreas costeiras densamente povoadas. Construir este "Transportador Nacional de Água" foi um desafio técnico considerável, porém, prioritário face às centrais de dessalinização.
O transvase de água entre bacias hidrográficas é uma solução viável para Portugal, onde os estudos indicam que se pode garantir o abastecimento de água em regiões onde a escassez é mais crítica. Os estudos do Projeto Tejo, que levam em linha de conta as alterações climáticas, concluem que o país consome atualmente apenas 8% da água disponível. Em 2100, de acordo com o mesmo estudo, esse valor será de 15%. Podemos reter uma pequena parte dessa água, sem causar grande impacto ambiental. No Norte estas previsões indicam que há excesso de água e que esse excedente poderia ser transferido para o Centro e Sul do país. A mesma fonte indica que no Sul (Alentejo e Algarve), a infraestrutura do Alqueva, baseada no rio Guadiana, resolve parte do problema, mas haverá escassez de água a longo prazo (25/30 anos), que tem de ser já endereçado. No Centro (Vale do Tejo, Oeste e Liz), uma nova estrutura semelhante a Alqueva, baseada no rio Tejo, resolveria o problema da água a longo prazo.
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A maneira mais fácil de sacar rendas ao Estado não é simplesmente extorquir dinheiro aos cidadãos - essa solução é para amadores. A melhor maneira é construir infraestruturas que não são necessárias ou que não são as mais eficientes, forçando sempre a inevitabilidade de mais investimentos futuros. No caso da dessalinização há ainda rendas garantidas associadas ao consumo de energia - há um contrato de subscrição, um "pinga-pinga", pago pelo Orçamento do Estado.
Para complicar, a dessalinização tem algo de virtuoso ou de invencibilidade: deixamos de depender do clima e promovemos a ideia (irresponsável) de que não temos de mudar comportamentos, já que os recursos marítimos são infinitos. A realidade é que a água é cara e será sempre insuficiente.
E finalmente, o governante que gastar dinheiro na dessalinização vai justificar a "generosidade" da sua opção com a sua paixão pelo ambiente. A eficiência, no discurso político, é medida pela despesa e não pelo custo de oportunidade da melhor alternativa possível.
Chegou a vez da água.
Filipe Charters de Azevedo, é fundador e CEO da DATA XL e da SafeCrop