No Brasil há um costume que define como "paraguaio" tudo aquilo cuja origem é duvidosa. Trata-se de uma referência não ao povo do Paraguai, mas ao volume de produtos contrabandeados que chegam ao Brasil vindos de lá: desde os antigos aparelhos de vídeo cassete na década de 1980, a telemóveis, eletrónicos e bebidas "importadas" dos dias de hoje - muitos desses produtos "fabricados" ali mesmo, em garagens e fundo de quintal. O volume de produtos contrabandeados sempre incomodou o comércio no Brasil. Numa campanha criada para a Semp-Toshiba pela agência de publicidade Talent, o mote era um vendedor a tentar empurrar produtos "originais" do Japão, feitos no Paraguai, onde ele afirmava: el dispositivo es muy bueno, no necesita garantía. - E arrematava - "La garantía soy yo". A frase grudou como chiclete e virou adjetivo de tudo aquilo que não tem qualidade.
Deveria ser esse o slogan do governo de Jair Bolsonaro. Um governo sem garantia alguma. Há poucos dias ele teve a desfaçatez de dizer que havia acabado com a lava jato. Deu essa declaração enquanto elogiava a si próprio e ao seu governo - se é uma coisa que ele não sofre é de baixa autoestima. Bolsonaro foi eleito com o discurso da moralização, da luta contra a corrupção e contra a "antiga política". Só haveria duas possibilidades de se acreditar nesse discurso: se o eleitor acabou de chegar de Marte; ou não entendesse nada de política - ainda que acredite o contrário.
Bolsonaro foi eleito vereador no Rio de Janeiro entre 1989 e 1991. Subiu de posto e foi eleito deputado federal entre 1991 e 2018. Foram 27 anos como deputado - sem apresentar um único projeto decente -, mais 3 como vereador. Se uma pessoa soma 30 anos na política, ela só representa o novo para um idiota, convenhamos. Seus discursos sempre foram de ódio, radical e populista. A defender a ditadura e a tortura, a ignorar os direitos humanos e a lutar contra a liberdade de expressão. Esse último quesito foi uma jogada estratégica. Eles precisavam desacreditar a imprensa uma vez que ela própria mostraria quem, de facto, eles são.
Seus filhos, um pouco mais espertos, viram que a insatisfação social com os crimes cometidos pela turma instalada em Brasília abrira um comportamento de repulsa às ideias de esquerda. Investiram forte no discurso anti-Lula e anti-PT. O povo estava desapontado, com a crise a fechar negócios, espantado com as revelações da Lava Jato e o envolvimento de grandes empresários. Só faltava alguém que chegasse primeiro para se autodeclarar representante da "nova política". Assim, Bolsonaro foi eleito como a antítese do PT e da "velha política". O "novo" com mais de 30 anos a mamar no erário público sem apresentar um único projeto de lei útil. Sua história é um nada.
A operação Lava Jato estava a mandar os figurões da política e do empresariado nacional para a cadeia. Os investigadores figuravam como salvadores da pátria e da integridade combalida do brasileiro. Nunca se viu tanta gente influente sendo investigada e condenada - sem interferência da presidente Dilma Rousseff, vale ressaltar. Bolsonaro aproveitou e durante sua campanha fez de tudo para se aproximar do então juiz Sérgio Moro, o chefe da Lava Jato que tinha um índice de aprovação popular altíssimo. Prometeu diversas vezes que a força-tarefa continuaria forte em seu governo e convidou Moro para Ministro da Justiça. Para os seus eleitores, porque obnubilados, aquilo era uma prova de que Bolsonaro estava alinhado à justiça. Na verdade tratava-se de uma estratégia para eliminar um grande obstáculo. Menos de dois anos de governo e tivemos a prova. Não se tira um juiz, que prende corruptos poderosos como nunca havia acontecido, de suas funções para virar um nada como fizeram com Moro. Ele deveria ter recebido era mais apoio para levar adiante as investigações. Mas não era o que eles queriam. Foi algo como tirar o melhor cozinheiro de um restaurante e "promovê-lo" a gerente da casa. Acaba com o restaurante. Bolsonaro acabou com o líder da operação, a figura bajulada internacionalmente como caçador de corruptos.
Quando deixou o Ministério da Justiça, o ex-juiz Sérgio Moro caiu a atirar para todos os lados. Acusou Bolsonaro de interferência na Polícia Federal para evitar que investigações, nas quais seus filhos eram alvo, fossem levadas adiante.
Naquela ocasião, houve uma reunião ministerial com o presidente, no palácio presidencial, que poderia ter tido lugar em algum botequim da fronteira com o Paraguai, tanto que lembrou um encontro de contrabandistas. De lá sairiam pérolas como a do ministro do meio ambiente - que quer acabar com as reservas florestais, mananciais e demais áreas protegidas, via decretos presidenciais. Ele disse, em outras palavras: vamos aproveitar que a imprensa está ocupada com a covid-19, é hora de "passar a boiada" - ou seja, é o momento de assinar todos os decretos de uma vez, ninguém vai perceber.
Nessa reunião Bolsonaro, que estava furioso com a direção da Polícia Federal no Rio de Janeiro que continuava a investigar seus filhos, faria o resumo do pensamento que é a base de sua conduta: "Eu não vou esperar "foder" a minha família toda de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro e ponto final! Não estamos aqui para brincadeira", regurgitou Bolsonaro, que só faltou dizer: La garantia soy yo!.
Jogou gasolina na fritura de seu ministro, Sérgio Moro, o ex-paladino da justiça que angariou tantos votos para a eleição do chefe. Já era hora de descartá-lo.
Moro teve seu nome cotado para disputar a Presidência da República, isso incomodava demais. A turma que sonha com a reeleição precisava fazer algo que destruísse a sua imagem de xerife anticorrupção. Fizeram. Hoje Moro só conseguiria um cargo de secretário em algum governo estadual, ou concorrer a deputado, talvez senador. Mas atualmente figura como mais autêntico loser que paga por se alinhar a uma farsa pelo poder.
O tempo passou, Moro caiu e Bolsonaro mandou essa: "Eu desconheço um lobby que crie dificuldade para vender facilidade. Não existe. É um orgulho, é uma satisfação que eu tenho, dizer a essa "imprensa maravilhosa" que eu não quero acabar com a Lava Jato. Eu acabei com a Lava Jato! Porque não tem mais corrupção no governo. Eu sei que isso não é virtude, é obrigação", afirmou em discurso para delírio de uma claque que não aceita enxergar os desvios de dinheiro nos quais a família presidencial está envolvida: sua esposa, com cheques depositados em sua conta corrente; seu filho, que possui ligações diretas com milicianos - cujas investigações os Bolsonaro fazem de tudo para impedir.
"As tentativas de acabar com a Lava Jato representam a volta da corrupção. É o triunfo da velha política e dos esquemas que destroem o Brasil, fragilizam a economia e a democracia. Esse filme é conhecido. Valerá a pena se transformar em uma criatura do pântano pelo poder?" - escreveu em suas redes sociais, diretamente do pântano onde jaz, o ex-juiz e atual walking dead, Sérgio Moro.