Não se esqueçam do vinho branco!

Permanece o mito popular de que "vinho tinto é que vale, branco é refresco", e deparamos chocados com a desvalorização a que o vinho branco é sistematicamente sujeito. A mesa portuguesa, contudo, não o dispensa e representa autêntica riqueza.
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Sejamos francos. Somos geralmente bebedores de rótulos e gostamos de impressionar acrescentando o preço à escolha que fazemos. É uma espécie de código extravagante de conduta que as mesas do poder adotam, por pouco sentido que isso faça. Queremos mostrar aos convidados o nosso melhor e nem sempre conseguimos resistir à tentação da ostentação. Tiramos o melhor da cave para partilhar com os amigos especiais e quase sempre é para o tinto que vai a escolha. O preconceito prevalece. No restaurante, o cenário mantém-se e mesmo numa empreitada marisqueira, por vezes, vem um tinto de topo para a mesa. Desperdício irremediável, porque do embate do vinho tinto com o marisco resulta a criação de dimetilamina, a mesma molécula do peixe podre! Um bom branco pode dar muito mais prazer do que um tinto e, nalguns casos, pode até ser mais caro.

Por terras de França encontramos vários exemplos do paradoxo, apesar de raros, convenhamos. O Chateau Haut-Brion (Bordéus) é porventura o melhor exemplo, o branco de 2022 - o mais recente - está à venda na londrina Berry Brothers & Rudd por 2100 euros a caixa de três garrafas, enquanto o tinto de 2015 - de novo o mais recente - custa 2800 euros a caixa de seis garrafas. Acrescem ainda despesas e IVA, mas para o caso pode ver-se que o branco é bastante mais caro do que o tinto e foi sempre assim.

Por cá, o famoso Pêra Manca tinto 2015 custa 450 euros na Garrafeira Nacional, enquanto o Pêra Manca branco 2020 custa 60 euros. Entramos no racional usual entre nós do vinho branco mais barato - bastante mais - do que o tinto. Devemos, no entanto, interrogar-nos acerca do valor real do vinho que consumimos e resistir ao preconceito de ir pelo que o mercado vai ditando. No fundo, a função grave do vinho à mesa é a assessoria da comida e é da harmonização feliz que nasce a nossa própria felicidade. Podemos e devemos pender para a escolha de um vinho branco sempre que no prato vamos ter marisco ao natural, no recomendável debulhe manual que é coisa tão portuguesa. E que melhor companhia pode ter um robalo escalfado em algas, como aquele que se faz no Mariana, em Afife? A riqueza em ferro do peixe e algas vai derrotar os polifenóis (taninos) de todo o vinho tinto encorpado, enquanto o vinho branco certo vai conseguir o balanço perfeito com o prato. Num cherne grelhado, como o que se faz no Cimas (English Bar), cai maravilhosamente um branco poderoso, estagiado em madeira. E num bacalhau assado com azeite, como se serve no Nobre, o rendimento de sabor é prodigioso, apesar das muitas vezes que a pedido do cliente é acompanhado por vinho tinto. Um restaurante é suposto ser um espaço prazeroso e de paz, mesmo quando é também o que se chama mesa de poder, onde os comensais estão em reunião de trabalho.

A literacia vínica é normalmente parca, mesmo quando há conhecimento de marcas, denominações de origem e estilos de vinho. Assume por isso papel determinante o bom aconselhamento por um escanção. Conhecedor profundo do cardápio, consegue ir ao encontro do gosto - e carteira - através de uma pequena conversa exploratória inicial. Gambrinus, JNcQUOI, Nunes Marisqueira e Rei dos Leitões são experiências de luxo recentes em que testemunhei a correção e o acerto da recomendação vínica.

Sabemos e aceitamos que o ticket da refeição seja elevado, mas não podemos nem devemos aceitar que o vinho seja motivo cego para aumentar o valor final da experiência. Há que valorizar quem nos valoriza por outras razões que não apenas a carteira. Além disso, um cliente bem tratado volta sempre, aquele que se sente defraudado não volta nunca mais. Nunca se demita de fazer valer a sua opinião e as suas opções e consulte sempre a carta de vinhos. Não há maior luxo do que poder surpreender os seus comensais com escolhas originais de vinhos brancos.

O cozido à portuguesa costuma ser acompanhado com vinho tinto, mas um branco sem madeira pode dar um sentido de descoberta inteiramente inédito. A parafernália de legumes, enchidos e carnes vai sentir-se em boa companhia. A dobrada com feijão branco pode ir muito melhor com um branco de acidez pronunciada do que com um tinto pesado. Pedir um branco pode ser o melhor caminho.

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