O SNS colapsou. Hoje, quem estiver de boa-fé, sabe que o SNS está mal desenhado, capturado por interesses e é ingovernável. Perante este descalabro, há duas visões: propor medidas incrementais ou uma reforma de fundo que aproxime o SNS de um modelo alemão, isto é, de um serviço universal de saúde que esteja lá para os cidadãos.
Ambas as medidas exigirão mais gastos. Mas na solução incremental apenas compramos tempo até à próxima rutura; na reforma estrutural, resolvemos, construímos um SNS de calibre europeu.
Vale a pena rever apenas um apontamento histórico para compreender o que está em causa e como chegámos até aqui.
O SNS no período democrático nasceu com a Constituição de 1976 e a aprovação unânime do art.º 64. Todos os partidos votaram a favor de um SNS gratuito. A expressão usada, na lei de bases de 1979, para essa gratuitidade é muito curiosa: "[a prestação de cuidados] não sofre restrições, salvo as impostas pelo limite de recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis." O SNS foi constituído sem limites formais. A prestação de cuidados de saúde (ideologicamente pública) podia exigir o que quisesse, que o Estado tinha de pagar. Sempre. Em qualquer volume.
Após a explosão inicial e necessária das despesas em saúde, e não havendo teto no crescimento dos gastos, os governos passaram a gerir a saúde com suborçamentação. Se pensarmos bem, quando não há limites à despesa, como controlar os gastos? Como imprimir alguma racionalidade no sistema? A resposta engenhosa foi a seguinte: em cada Orçamento do Estado, os governantes "diziam" que o SNS não precisava de mais dinheiro e que "estava tudo bem", pelo que orçamentavam menos do que o devido. Mobilizava-se o dinheiro necessário para essa gestão otimista, tal como diziam a lei e os preceitos constitucionais. Com a gerigonça, este expediente foi levado ao extremo. Mas na prática não se quis planear, organizar, dirigir e controlar um serviço de saúde.
Parece um paradoxo, mas devido ao voluntarismo populista de dizer que se gastaria o que fosse preciso, não conseguimos construir um bom serviço de saúde. Temos todos os anos um sistema de saúde para o inverno seguinte. Este é o problema das soluções incrementais, só se pensa para o curto prazo. Pior: pagamos esta falta de visão com poucos cuidados e uma enorme despesa direta das famílias para saúde. E ainda pior: controlamos os gastos com listas de espera, operações não realizadas e creio que a prazo com anos de vida potencialmente perdidos. A mortalidade materna nos últimos 5 anos (incluindo anos antes da pandemia) tem estado a bater recordes.
Com a falência iminente do SNS, vai uma vez mais corrigir-se a falta de planeamento com dinheiro. Vamos despejar dinheiro para o sistema para fazer à pressa o que não se quis fazer de forma ponderada.
Claro que há sempre a seriedade dos profissionais e a responsabilidade de todos. Aliás, acredito que a maior parte dos profissionais age de boa-fé e por isso conseguimos enormes vitórias. Mas a prazo, contar apenas com a responsabilização pessoal é como pedir para os portugueses terem "mais cuidado no verão para não adoecerem" e não "comerem bacalhau à Brás em agosto". É simplesmente risível.
Não me interpretem mal: precisamos de um serviço de saúde universal e sem restrições de acesso, nomeadamente sem barreiras financeiras. Isso está longe de defender um sistema de saúde sem planeamento ou controlo e com indicação de gastos ilimitados.
Há soluções europeias para este desafio de gestão. Não é preciso sequer ser revolucionário. Nos países de inspiração alemã, e concretamente na Holanda, há vários SNS (aliás, vários subsistemas) a operar no mesmo espaço geográfico. E quando um funciona mal, o utente pode mudar de subsistema e de rede de prestação - sem pagar mais, já que pagou tudo o que devia em contribuições. Não há, assim, listas de espera.
As redes de prestação (e os gastos e a produção) são controladas por quem gere cada um dos subsistemas - quem paga manda. Os prestadores podem ser públicos, privados ou sociais - usamos assim toda a capacidade instalada. Todo o sistema de saúde é autónomo estando por isso afastado das cativações do Ministério das Finanças. Aliás, o crescimento dos gastos em saúde está ligado ao crescimento dos salários, pelo que a sustentabilidade da despesa está garantida. Há previsibilidade nas receitas, já que as contribuições da saúde só podem ser gastas na saúde, permitindo-se assim planear a médio prazo e prever as necessidades da população.
Ao longo do tempo tem havido pouca coragem para defender uma solução de inspiração alemã. Esperemos que com o SNS em falência haja coragem para salvar o SNS - ainda vamos a tempo.
Filipe Charters de Azevedo é CEO da Data XL e da Safe-Crop