Há meses que sabia que ia mudar de escola e de ciclo. Nem pestanejou, estoico, o meu menino. Na véspera tremeu mas lá adormeceu com tudo preparado para o dia seguinte. A viagem correu bem, serena e sonolenta, sem história. Apesar de ser educado como filho único/neto, não revelou ponta de nervosismo. Nem eu. Mas chegados instalou-se o caos. Arrancou aos bocadinhos: "Eu não vou ficar aqui. Quero voltar para a minha escola. Não quero fazer amigos novos. Aqui é que eu não fico". Como? Agarrou-se tipo coala às minhas pernas e foi repetindo a lengalenga baixinho. Tentei soltá-lo, explicar-lhe que não havia hipóteses, que tinha mesmo de ir. E é então que o meu rico menino explode em choro de boca aberta com lágrimas a escorrerem-lhe pela cara abaixo. Sem controlo. Entretanto, tocou, pais e crianças passavam por nós num misto de pena e perplexidade, como quem abranda para ver um desastre. A criança não me largava, nem me ouvia. E eu sem saber que fazer. Ao sexto, sem saber o que fazer. Entrei pela escola com ele de rojo em busca de auxílio, de alguém que lhe secasse as lágrimas e o levasse perante a minha impotência, incompetência. "Os pais não podem entrar aqui", alertou num tom cândido uma auxiliar sem dó nem piedade. Pegou nele, com a ajuda de mais um professor enviado dos céus, e levaram-me o menino pelo corredor rumo ao desconhecido. Aproveitei e fugi sem olhar para trás. O meu coração ficou lá, a esvair-se naquele choro, naquele desespero próprio de quem entra numa prisão para cumprir pena até ao final vida. E agora?
Nada. No segundo dia engoliu o choro, levantou a cabeça e lá foi, no terceiro dia riu-se nervoso quando disse adeus e no quarto nem olhou para trás. "Parece que estou nesta escola há um mês", diz ele ao quinto dia sem remorsos pelo estado em que deixou o meu coração. E conta, como se nada se tivesse passado: "Já tenho "uma miúda que gosta de mim". Como é que sabes? "Então, a melhor amiga dela disse-me e ficaram as duas a olhar para mim." E depois? "Fui-me embora, claro!".
E jogou futebol com os mais velhos e ri-se a contar as piadas com uma menina da mesma turma que tem "mesmo graça", também já sabe que amanhã o campo é só para eles e dormiu com a chave do cacifo da escola debaixo da almofada e, por fim à noite, enquanto lhe entalei a cama declarou que não tem desejos para pedir porque "a minha vida é perfeita".
Em três dias passou do inferno aos céus sem sair do mesmo sítio.
Com os outros não foi assim. Os outros mudaram de escola, de desporto, de casa e de vida algumas vezes e em todas elas o meu coração manteve-se imperturbável. Consolado pelo facto de eles terem irmãos a passarem pelo mesmo martírio, tipo companheiros de tropa, que se consolavam uns aos outros, apoiavam e diziam mal da vida, dos pais e da escola com afinidade e compreensão. Eram eles, em bloco, contra os pais ou quem os levava à escola. E nós íamos vencendo orgulhosos cada batalha como se de uma guerra se tratasse. E íamos à nossa vida sabendo que ali não éramos precisos, que passava. E passou sempre.
Com um filho único, assim como este que cresce fora do grupo dos irmãos mais velhos, fazemos nós a vez dos irmãos. Mas como pais que somos, não conseguimos: se somos pais, não conseguimos o estatuto de companheiros de luta; se assumimos a camaradagem da batalha, não conseguimos agir como pais. E ficamos parvos e paralisados.
E o meu menino, único, brinca com isso. Com o meu pobre e frágil coração. É que se eu pudesse não o tinha largado na escola. E ele sabia. O estupor.