"Naquela altura éramos umas damas". O legado das reuniões da Tupperware

O negócio da multinacional norte-americana deu os primeiros passos no país no final da década de 60 e Portugal destacou-se no panorama internacional da marca de caixas de plástico. Antigos gestores estão confiantes na continuidade da operação.
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No dia e na hora marcados a casa enchia-se de amigas, vizinhas e família. As famosas caixas de plástico de todos os tamanhos e cores, que eram o mote do encontro, despiam-se de protagonismo para dar palco a infindáveis horas de conversa. À volta da mesa partilhavam-se desabafos. “Passávamos tardes inteiras a falar, e nós, vendedoras, desempenhávamos o papel de psicólogas. As famosas ‘reuniões da Tupperware’ eram também uma oportunidade para confidências, e o que se dizia ali, ali ficava”, relembra Cecília Pereira, de 64 anos.

A consultora da Maia, que soma mais de duas décadas ligada à marca de recipientes para alimentos, resgata as memórias destas icónicas tertúlias. Puxando o fio à memória, conta que era entre um gole de chá e uma fatia de bolo que o negócio se concretizava, a carteira de clientes crescia e a equipa aumentava.

As pequenas assembleias, conduzidas com a leveza de um convívio informal, assumiam uma roupagem subtil de reuniões de negócios assertivas, com uma tríade de objetivos bem traçada: vender, agendar a próxima Party Tupperware (denominação mais recente adotada pela insígnia ) e recrutar.

A Tupperware foi pioneira no modelo de vendas diretas no início dos anos 50, nos Estados Unidos, e, década e meia depois, cruzou o Atlântico e chegou a Portugal. Sem lojas físicas, a comercialização dos produtos era consumada boca a boca. Os catálogos em papel anunciavam as novidades que prometiam revolucionar o ambiente doméstico. As equipas robusteciam-se a dois passos de casa com várias gerações a render-se à atividade.

Embora não fosse barato, o produto seduzia clientes e as transações multiplicavam-se. Rute Xavier, professora da Católica Lisbon School of Business and Economics, atesta que o modelo de negócio foi, de facto, revolucionário: “A par de outros exemplos de vendas diretas, como é o caso da empresa de cosméticos Mary Kay [fundada também nos Estados Unidos em 1963], foi um sucesso porque surgiu numa altura em que para as mulheres era complicado encontrar mecanismos de rendimento. Com a Tupperware podiam ficar em casa com as amigas e trabalhar ao mesmo tempo.”

A inovação apresentou-se também como um ingrediente fundamental. “Nos anos 60 não existia tanta facilidade na compra de caixas para casa. O fecho hermético, que era uma novidade, e a qualidade dos itens foram disruptivos numa altura em que as alternativas eram de má qualidade ou nem sequer existiam”, acrescenta.

O negócio, que se propagou num ápice no país, foi acolhido por mulheres de várias profissões. Aos 60 anos, Paula Crisóstomo, que gere uma equipa de 40 pessoas, confirma o perfil eclético das suas vendedoras: médicas, enfermeiras, professoras e contabilistas abraçam as vendas em paralelo.

Se há quem o faça a tempo parcial, para amealhar algum dinheiro extra, para a consultora de Rio Maior, que dedicou metade da sua vida a este trabalho, esta é a sua ocupação principal. Nos anos 90 uma amiga desafiou-a a dar o salto de fé. “Foi um sucesso até hoje. Na primeira semana vendi 200 contos, era muito dinheiro na época. Já ganhei bons ordenados aqui. Dediquei-me a isto de tal maneira que nunca quis outra profissão”, garante.

A liderança de Portugal na operação internacional

O sucesso do negócio vindo dos Estados Unidos não tardou a dar frutos em terras lusas. António Gil, antigo diretor-geral da Tupperware em Portugal e Espanha, destaca que a multinacional, além de “tratar bem as pessoas, pagava salários acima da média”. A operação dentro de fronteiras, relembra, “era extremamente lucrativa”, com o país a ser “um dos melhores exemplos na rede dos 100” onde a marca operava.

“Fiquei na Tupperware Portugal até 2017 e nessa altura contávamos com uma rede de 15 mil trabalhadores independentes. A estes acrescia uma equipa de 30 quadros nos escritórios centrais, em Lisboa, e 400 trabalhadores na fábrica em Constância, que era, aliás, uma das duas melhores a nível mundial. Durante este período os lucros cresceram sete vezes e as vendas eram fantásticas”, explica.

Na visão do empresário, o contexto económico do país deu um empurrão ao modelo de negócio que seguia em trajetória ascendente. “Portugal é conhecido por ser um país de baixos salários e, ao contrário do que se diz, os portugueses querem trabalhar e ganhar dinheiro. Esta era uma forma de aumentar o rendimento mensal. Na rede, cerca de 90% destes vendedores estavam a part-time e os outros 10%, que se dedicavam a tempo inteiro, ganhavam, obviamente, muito dinheiro”, aponta.

O esquema de incentivos da norte-americana completava o pacote de regalias e dava gás ao entusiasmo comercial. As viagens, dentro e fora de portas, ou as estadas em alojamentos de luxo eram oferecidas como prémios às melhores vendedoras. “Nós éramos umas damas, umas senhoras. Chegávamos aos hotéis mais reputados e recebiam-nos com toda a pompa e circunstância. Visitámos lugares que de outra forma não teria sido possível conhecer”, rememora Lucília Moita.

A enfermeira reformada, de 75 anos, coleciona infindáveis histórias das três décadas ao serviço da Tupperware e confessa que a ligação à marca “é um vício”. Atualmente é atrás de um pequeno balcão que enfeita a entrada do discreto centro comercial O Pescador, na Costa de Caparica, que recebe os clientes, muitos deles fiéis há vários anos. As incontáveis caixas, utensílios e garrafas de plástico saltam à vista no expositor e no meio do caos colorido de tamanhos e formatos moram relíquias que foram apagadas das fábricas e dos catálogos.

Os tempos mudaram, as vendas arrefeceram e o amor à camisola é a única engrenagem que a faz continuar ligada aos recipientes criados por Earl Tupper, em 1946, e cujo modelo de vendas foi desenvolvido pela norte-americana Brownie Wise, dois anos mais tarde.” O negócio já não é o que era, o rendimento é cada vez menor. Esta semana, por exemplo, não vendi quase nada”, confessa. 

Concorrência e gestão aceleraram queda do império do plástico

A época dourada das vendas da Tupperware chegou ao fim e dos tempos áureos restam as memórias. As Party Tupperware caíram em desuso - se já vinham a perder força nos últimos anos, a pandemia de covid-19 acelerou a declaração de óbito -, a concorrência de produtos de qualidade semelhante a preços inferiores ganhou músculo e as novas formas de negócio que emergiram impactaram o monopólio da marca.

“A Tupperware foi pioneira, mas depois faltou-lhe continuar a inovar na tecnologia, no design e na usabilidade. Há muitos produtos novos, mas continuam a ser iguais aos de há 30 anos”, constata Rute Xavier. A mudança dos hábitos de consumo e o fácil acesso a estas embalagens nas grandes superfícies são outros dos desafios sinalizados pela docente, especialista em estratégia, organizações e empreendedorismo.

Para António Gil o modelo de negócio pioneiro “continua válido”, mas, admite, “carece de modernização. Diria que não é tanto concorrência do supermercado, mas principalmente da compra via digital. A empresa deveria ter apostado na atualização das ferramentas digitais mais cedo e acredito que seria perfeitamente conciliável com a rede tradicional”, sustenta.

Apesar dos obstáculos, para o antigo diretor-geral foi a troca de cadeiras nas lideranças que conduziu a empresa ao atual estado, empurrando-a para a situação de falência. “O CEO com o qual trabalhei, Rick Goings, tinha muita experiência. Embora a Tupperware tivesse alguns problemas de endividamento excessivo, o chairman era uma pessoa tão credível no mercado financeiro que havia sempre a possibilidade de renegociar dívidas. Em 2019 saiu e foi o mexicano Miguel Fernandez quem assumiu a continuidade. Os quadros diretivos foram também alterados e todas as pessoas que conheciam a Tupperware acabaram por sair. A partir daí assistimos a uma série de decisões completamente erradas que não tinham nada a ver com o core business. Não se chega a uma empresa e se corta com toda a inteligência que ela tem”, argumenta.

As novas equipas, enquadra, traziam nos currículos experiência em marcas como a Herbalife ou a Avon, “que são empresas com culturas e formas de operar completamente diferentes”. “Todo este cenário não foi benéfico e basta ver que as ações da Tupperware chegaram a valer 70 dólares e poucos anos depois, em 2020, caíram para dois ou três dólares. Havia qualquer coisa que não estava bem.”

Na semana passada a bolha estourou com a norte-americana a iniciar um processo junto do Tribunal de Falências no estado de Delaware, ao abrigo do capítulo 11 do código das falências dos Estados Unidos. A multinacional, que acumula dívidas aos credores no valor de 700 milhões de dólares [cerca de 627 milhões de euros], afirmou ter sido “severamente impactada pelo desafiador ambiente macroeconómico”. E pediu ao tribunal aprovação para “facilitar um processo de venda”, bem como para continuar a operar enquanto os trâmites legais decorrem.

O antigo vice-presidente e diretor de operações da Tupperware, Simon Hemus, que integra a empresa há duas décadas, admitiu que as notícias que correm o mundo “são desconfortáveis e poderiam ter sido evitadas”, sustentando que o atual contexto da companhia é “um caso de estudo de mau planeamento na sucessão da gestão, na falta de entendimento em perceber como a concorrência reduziu o preço com produtos mais inovadores e no risco da aposta em canais de distribuição com os quais não era possível competir”.

Apesar das nuvens que pairam por cima do negócio com quase oito décadas, o empresário está otimista. “Não estejam muito alarmados, isto acontece às empresas. A companhia será reorganizada e esperemos que chegue alguém e a salve, porque é uma marca fantástica, com pessoas e uma estrutura de vendas fantásticas”, disse num vídeo partilhado na rede social LinkedIn. Aos consultores deixou o apelo para se focarem “no negócio e se manterem calmos” defendendo que, nesta altura crucial, “têm a capacidade de fortalecer e ajudar o negócio”.

Por cá, as indicações seguem o mesmo eixo, confirma a consultora da Maia Cecília Pereira. “As nossas chefias dizem-nos para continuarmos o nosso trabalho normalmente e afirmam que haverá grandes novidades no próximo ano. Espero que sim, pois há muita gente que precisa disto para viver”, remata.

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