No escuro do cinema

Ver cinema em Hollywood é uma experiência única. Uma espécie de prova de vinhos dentro da própria vinha. É um grande privilégio ver filmes antes de estrearem, mesmo ao lado dos estúdios. Só que agora, em vez de olhar para o ecrã, dei por mim mais preocupado com as saídas de emergência. Não conseguia esquecer os atiradores solitários que nas últimas semanas entraram em vários cinemas e mataram espectadores a sangue frio.
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Katie estava grávida de 9 meses e feliz. Com o marido, foi ao cinema antes de o seu primeiro filho nascer. Em minutos, a sua vida mudou para sempre. De repente, as balas do filme confundiram-se com os gritos e o pânico real que rebentou dentro da sala. O marido ao seu lado caiu atingido por vários tiros, e Katie teve de tomar a decisão mais difícil da sua vida. Fugiu para salvar o filho que tinha dentro de si, deixando o marido a esvair-se em sangue no chão. O testemunho desta mulher gelou todos os que assistiram no tribunal ao julgamento do atirador que há 3 anos matou 12 pessoas e feriu 70, num cinema no Colorado. Enquanto decorria este julgamento, mais dois outros atiradores, nas últimas semanas, tentaram fazer o mesmo em cinemas diferentes. Pelo caminho deixaram mais mortos, vários feridos e milhões de espectadores aterrorizados. Nenhum dos assassinos sobrou para explicar a razão destes atentados.

Não, não sou o único. Pelas conversas nas salas de cinema e nas publicações da especialidade são muitos os norte-americanos que passaram a ter medo de ver filmes fora de casa. Muitos dizem olhar com desconfiança para quem se senta ao seu lado. E se alguém entra com sacos ou mochilas, a inquietação é ainda maior. Cada espectador passou a ser um potencial assassino. Os grandes cinemas, até aqui locais de diversão e de família, passaram agora a ser lugares de alto risco. Os distribuidores questionam já se, depois dos aeroportos, estas salas devem também instalar detetores de metais.

Depois da queda do número de espectadores e da pirataria, a indústria do cinema receia que esta possa ser a machadada fatal para um negócio que começa a dar sinais de fraqueza. Uma queda agravada também no último ano pelo sucesso das séries de televisão. Pouco a pouco começaram a roubar espectadores ao grande ecrã, investimento e os melhores atores e realizadores. Basta ligar a televisão em qualquer parte do mundo para ver que quase nenhum dos grande nomes escapa já ao pequeno ecrã. A televisão passou a ser a arte nobre da realização e da representação, e ainda por cima com mais segurança. Para o cinema norte-americano ficaram as produções com grandes efeitos especiais, as que ainda conseguem encher literalmente o olho e o ecrã. E mesmo estes filmes parecem agora ameaçados pelo fenómeno aterrador dos atiradores das salas de cinema.

Com estes novos atentados tocaram as sirenes nesta que é a grande indústria de Hollywood e uma das maiores exportações dos Estados Unidos. Muitos estão preocupados, ninguém o quer admitir, mas todos discutem o problema à porta fechada. Sabem que qualquer semelhança entre a realidade dos tiroteios com a ficção dos filmes já deixou há muito de ser pura coincidência.

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