
Cinco meses antes das eleições que Donald Trump venceu, um grupo de 700 investidores de Silicon Valley assinou uma carta de apoio a Kamala Harris, citando o perigo de colapso da indústria sem “instituições fortes e de confiança.” A preferência no epicentro da inovação tecnológica pendia para a candidata democrata e a previsibilidade da sua administração, tal como acontecera em ciclos eleitorais anteriores.
Tudo isso está esquecido agora. Com a tomada de posse de Donald Trump marcada para 20 de janeiro, em Washington, D.C., a indústria tecnológica está focada em conseguir uma relação mais harmoniosa com a nova administração. Com menos audições no Congresso e mais incentivos à inovação; com menos regulações e mais liberdade para crescer.
Quando soarem as 12h00 locais, vários patrões da “big tech” que chocaram com Trump nos últimos anos estarão sentados a assistir à sua posse, e Mark Zuckerberg será mesmo um dos anfitriões do baile de celebração inaugural. Jeff Bezos e Elon Musk — agora um dos principais conselheiros de Donald Trump – também estarão presentes.
A aproximação das grandes tecnológicas a Trump denota a expectativa de que a sua administração lhes seja mais favorável, com desregulação e menor escrutínio. Isso terá implicações sérias no futuro do desenvolvimento da Inteligência Artificial, para onde está a ser canalizada a maior parte do investimento e recursos em Silicon Valley.
Espera-se que uma das primeiras medidas do presidente seja a revogação da ordem executiva para a IA que tinha sido assinada por Joe Biden em outubro de 2023. Esta ordem colocou salvaguardas de privacidade e equidade no desenvolvimento de IA, dividindo-se em oito áreas – segurança, privacidade, proteção da equidade e direitos civis, saúde, mercado laboral, inovação e concorrência, cooperação internacional e utilização responsável pelo governo. Um dos resultados das obrigações impostas pela ordem executiva foi a ação do Departamento de Energia, que está a trabalhar com a Anthropic para que o seu modelo Claude não ajude os utilizadores a construir armas nucleares caseiras. Outras preocupações estão relacionadas com bioterrorismo, preconceitos racistas e anti-semitas, manipulação de imagens para fins de pornografia, instrumentalização política e social de ‘deepfakes’ e por aí fora.
O problema é que muitas empresas consideram que as salvaguardas equivalem a censura e dificultam a inovação, querendo ver menos impedimentos regulatórios para inovarem mais rapidamente.
A concorrência com a China
Quando nomeou o milionário David Sacks como “czar” da IA e criptomoedas, Donald Trump enquadrou a escolha na necessidade de os Estados Unidos manterem a sua supremacia no palco mundial.
“Neste importante cargo, David vai orientar a política da administração em Inteligência Artificial e criptomoedas, duas áreas críticas para o futuro da competitividade americana”, escreveu Trump, no comunicado da nomeação. “David vai focar-se em tornar a América no líder global inequívoco nas duas áreas”, complementou, dizendo ainda que iria “salvaguardar a liberdade de expressão online e afastar-nos dos preconceitos e censura da big tech.”
A preocupação com a ameaça chinesa tem sido um fio de continuidade entre as várias administrações. O Departamento de Justiça, ainda sob Joe Biden, alargou recentemente a “lista negra” de empresas com restrições de trocas comerciais adicionando mais de vinte organizações chinesas, incluindo várias envolvidas em IA. As empresas nesta lista não podem receber exportações de bens ou tecnologia sem uma licença, que quando pedida é normalmente negada.
A administração Biden também apertou as restrições sobre a venda de chips avançados (incluindo para IA) com a intenção de impedir que cheguem a empresas chinesas.
Esta política deverá ser mantida por Donald Trump e até endurecida, visto que o próximo presidente prometeu impor tarifas de 60% nos bens importados da China – a que se poderá seguir a retaliação de Pequim.
Mas o facto é que as empresas chinesas estão a obter avanços notáveis na IA, mesmo com as dificuldades de acesso. Modelos como o Qwen da Alibaba, Yi da 01.AI e DeepSeek estão a ganhar popularidade global e a conseguir desempenhos que rivalizam com os modelos ocidentais. Mais, são abertos e de acesso generalizado. O que é que acontece se forem os modelos chineses a estabelecerem-se como padrão mundial?
América Primeiro
É por isso que a OpenAI de Sam Altman está a aproximar-se de Donald Trump com uma visão de “IA para a América.” Altman foi um dos magnatas da tecnologia que doou um milhão de dólares ao fundo de inauguração de Trump, tal como Zuckerberg e Bezos, e pretende cair nas boas graças da administração.
Esta semana, a OpenAI publicou uma espécie de manual económico para que os Estados Unidos sejam líderes em IA. “Acreditamos que a América tem de agir agora para maximizar as possibilidades da IA ao mesmo tempo que minimiza os seus malefícios”, escreveu o diretor de política da empresa, Chris Lehane. “Queremos trabalhar com os legisladores para que os benefícios sejam partilhados responsável e equitativamente.”
Em simultâneo, a OpenAI retirou da sua política a parte em que se comprometia a desenvolver IA imparcial politicamente, numa aparente resposta às críticas de Trump e dos seus aliados, que acusam a ‘big tech’ de censurar os pontos de vista conservadores.
Foi nesta linha também que Mark Zuckerberg anunciou o fim da verificação de factos nas redes sociais da Meta (Facebook, Instagram e Threads), um regresso aos conteúdos políticos e o aliviar das restrições em certos tipos de discurso, como expressões homofóbicas e misóginas.
Zuckerberg é um dos patrões da ‘big tech’ com a fasquia mais elevada em 2025: a Meta vai enfrentar o Departamento de Justiça em tribunal, depois de ter sido acusada de monopólio. Enfrenta a possibilidade de ser partida aos bocados, algo que o CEO quer impedir e que poderá contar com a intervenção de Donald Trump, se a política de desregulação e pouca intervenção que se espera for seguida.
Esta linha orientadora diverge do rumo que está a ser seguido na União Europeia, que foi pioneira com o AI Act. Mas é possível que alguns estados contrariem a política federal. Califórnia, Vermont, Colorado e outros têm mostrado mais agressividade na abordagem aos impactos da IA, esperando-se que 2025 traga regulações em áreas como ‘deepfakes’, tecnologia IA que automatiza decisões e a obrigatoriedade de revelar quando um utilizador está a falar com um agente IA versus um agente humano.
A grande incógnita é o papel de Elon Musk. Depois de ter sido uma das vozes mais ativas a avisar para o risco existencial da IA, Musk está a investir na sua empresa xAI e no desenvolvimento do seu modelo Grok – que não terá quaisquer salvaguardas quanto a desinformação e discurso de ódio, porque Musk considera que isso é censura. No entanto, o homem mais rico do mundo também apoiou legislação na Califórnia com várias imposições ao desenvolvimento de IA. Sendo, neste momento, um dos principais conselheiros de Donald Trump, a sua visão sobre regulação, salvaguardas e concorrência poderá moldar de forma decisiva a política a seguir pela Casa Branca nos próximos anos.