"Nunca mais me meto noutra"

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"Nunca mais me meto noutra", diz o cidadão comum, no dia seguinte a uma noite de exorbitância etílica, afundado em terrível dor física e em ainda mais insuportável vergonha moral.

"Nunca mais me meto noutra", afirma, mesmo sabendo, no íntimo, que se a oportunidade se proporcionar lá estará de novo a escorregar até nunca mais se meter noutra outra vez.

"Nunca mais me meto noutra", foi o que disse, afinal, não um cidadão mas um país comum, enquanto, dolorido e envergonhado, vomitava do seu organismo o excesso tóxico chamado Collor de Mello, em 1992.

E, no entanto, esquecidas a dor física e a ainda mais insuportável vergonha moral, lá estava, 26 anos depois, na escuridão do dia 28 de outubro de 2018 a escorregar novamente.

Fisicamente dolorido - dizem especialistas que são 400 mil mortes por covid-19 evitáveis - e moralmente envergonhado - deixou solto no poder um destruidor da educação, da cultura, do meio ambiente, da política externa, ao ponto de tornar o país pária e piada internacional -, o Brasil tem, pelo menos, uma data, outubro de 2022, o mais tardar, para vomitar do seu organismo o excesso tóxico chamado Jair Bolsonaro.

O tempo, no entanto, é de analisar o que leva os cidadãos, e os países, a desafiarem os seus próprios organismos, a arriscarem conviver com a dor e a vergonha, a enfrentarem os riscos de um uísque ou de um político falsificados. No fundo, quem descobrir o que nos leva ocasionalmente a beber demais, talvez descubra a cura para os males do planeta.

Ao longo das últimas décadas, por mais que a democracia tenha provado ser o melhor sistema político à exceção de todos os outros ao longo da história e o capitalismo o arranjo económico que menos empobreceu o povo desde que chegou para ficar há três séculos, o cidadão comum sentiu-se cada vez menos representado - o oposto do que prometia a democracia - e cada vez mais distante da ascensão social - o contrário do que vendia o capitalismo.

Nos Estados Unidos, o modelo do Brasil, o cidadão comum viveu sob um Bush, depois sob um Clinton, depois sob outro Bush e, quando se preparava para mais uma Clinton sem que a sua vida tivesse progredido (é mais provável, aliás, o reverso) preferiu embebedar-se de Trump, de terra-planismo, de movimento anti-vacina, da última idiotice da internet.

No Brasil, a Operação Lava-Jato, ao explodir tão simbolicamente no colo do Partido dos Trabalhadores, com réplicas em todos os outros partidos tradicionais concorrentes, criou um desânimo de tal ordem que os eleitores embarcaram na conversa de botequim de um militar, de um político e de um ser humano incompetente.

É necessário, para evitar as dores de cabeça e de alma de um Collor ou de um Bolsonaro (ou de um Trump) que as instituições políticas e os mecanismos da economia de mercado sejam mais inclusivas - é necessário, no fundo, que o estado de sobriedade seja mais atraente do que o estado de embriaguez. Como? É o desafio.

Mas, caso esse desafio não seja ganho, o "nunca mais me meto noutra" vale só até nos metermos noutra outra vez.

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