Nuno Lima da Luz: “Bitcoin é muitas vezes considerada o ouro 2.0. É tudo aquilo que o ouro é, mas melhor” 

Presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas não esconde que criptoativos comportam muitos riscos. “Tão depressa  é fácil ganhar [dinheiro] como é fácil perder.” 
Nuno Lima da Luz, presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas
Nuno Lima da Luz, presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e CriptomoedasGerardo Santos/Global Imagens
Publicado a

Advogado associado na Cuatrecasas, especializado nas áreas de novas tecnologias, onde se inclui blockchain e ativos virtuais, Nuno Lima da Luz mostra-se cético em relação ao primeiro ano de declaração no IRS de mais-valias de criptoativos. “Não sei se [os funcionários da Autoridade Tributária] estão já devidamente preparados”. O presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas (APBC) sugere ainda aos contribuintes que tenham dúvidas em relação ao preenchimento da sua declaração de IRS consultarem um fiscalista ou contabilista antes de fazer qualquer submissão. 

A bitcoin atingiu esta semana um novo recorde, cima dos 69 mil dólares. A que se deve?
Deve-se ao facto de haver uma procura crescente sobre este ativo em particular. Deve-se muito também ao facto de nos Estados Unidos terem sido aprovados e já estarem a ser comercializados estes produtos, os ETFs [Exchange Traded Fund, ou fundos de índices cotados, em português] com Bitcoin, em mercado spot [onde o pagamento e entrega de ativos são instantâneos], algo muito ansiado por toda a indústria nesse ponto de vista. Não os mais puristas, obviamente, porque querem estar desligados deste mundo tradicional financeiro, mas muitos investidores, ou quem acredita neste tipo de propriedade digital, já esperava por este tipo de aumentos. Ou seja, tem havido um grande influxo de capitais para estes ETFs, que no fundo, aquilo funciona em regime de cash redemption, portanto, as pessoas metem dinheiro, o fundo compra as Bitcoins, guarda-as e as pessoas detêm parte. É um ETF normal, de qualquer tipo de commodity. Portanto, com esta comercialização deste tipo de produtos nos Estados Unidos, houve claramente uma procura ainda maior. E agora, por parte de pessoas menos ligadas à indústria em si, acabamos por ter outro tipo de instituições mais conservadoras a ter alguma exposição a este tipo de ativo.

Como é que explica toda esta volatilidade, quando em novembro de 2022 estava abaixo dos 16 mil dólares, e em novembro de 2021 acima dos 67 mil dólares?
Há várias razões. A primeira é que ainda não há muita gente que tenha este ativo. E não estando suficientemente disperso, criam-se estas situações, que às vezes podem parecer díspares, ou estas grandes flutuações de preço. Outra razão tem a ver com a própria lógica e funcionamento. Com este tipo de ativo, temos aqui duas condicionantes, e com a aprovação dos ETFs também. Temos as pessoas que fazem auto custódia do ativo e que o têm e guardam por si só. E depois temos estes ETFs que têm de comprar em nome de um terceiro, em nome do cliente final, deste tipo de produtos financeiros. E pode haver aqui depois alguma assimetria também desse ponto de vista. Portanto, há uma procura muito grande por estes fundos, que compram em grandes quantidades e detêm esse ativo em grandes quantidades. A maneira depois como vendem ou fazem esse redemption, essa troca de ativos, também vai variando. Não funciona nos trâmites do mercado normal, dos mercados financeiros norte-americanos normais. A par e passo, temos também as pessoas que têm estes ativos ou têm um centralized exchange, uma bolsa centralizada, ou fazem auto custódia e depois passam para esse tipo de plataformas centralizadas. Isto faz com que haja grandes flutuações de preço.

Então é muito especulativo... 
Não, qualquer bem que compremos hoje mais barato para vender amanhã torna-se especulativo. Essa é a própria definição de especulação, não é? As pessoas mais fiéis a este ativo e que consideram bitcoin como o melhor asset mundial em termos de propriedade para guardar a longo prazo, não veem isto desse ponto de vista puramente especulativo. Mas há pessoas que o veem. Como também há especulação em carros, em casas, qualquer bem serve para fazer especulação.
Os resultados de investimentos em bitcoin justificam, em parte, o aumento do número de ultramilionários, segundo dados da Wealth Report, um estudo realizado pela Knight Frank. Não teme que se crie uma perceção na sociedade de que este tipo de investimento é dinheiro fácil? Pode haver essa tendência, mas a verdade é que também comporta muito risco. Tão depressa é fácil ganhar como é fácil perder.

Então é uma espécie de casino?
Alguns ativos podem ser, porque não têm nenhuma base subjacente sólida, além desse caráter puramente especulativo ou até de brincadeira. Há uns tokens que se chamam até memecoins, que assentam só em ter figuras de Keynes ou Shiba Inu, Dogecoin, Pepcoin. Há muitos tokens. Temos tokens que realmente não têm nenhuma base sustentável ou sólida, mas depois temos milhares de projetos sólidos. Temos, por exemplo, Filecoin, temos Arweave, que basicamente são protocolos que servem para guardar informação de uma maneira descentralizada. E já nem falo na ethereum, que depois serve para pagar uma computação descentralizada a nível mundial, onde podemos ter o nosso software a correr por cima dessa rede. E depois temos, efetivamente a bitcoin, que muitas das vezes acho que fica aquém da própria definição de bitcoin, mas muitas das vezes é considerado o ouro 2.0. Há uma evolução natural do ouro. Portanto, é tudo aquilo que o ouro é, mas melhor, é uma evolução natural. É um ouro que podemos, sem necessidade de intermediários, fazer passar a propriedade de uma pessoa A para uma pessoa B.

Mas com maior volatilidade em termos de preço.
Sim, desse ponto de vista ainda não se atingiu esse caráter de moeda, mas também dificilmente será uma moeda nesse sentido. Apesar de já termos um país que adotou enquanto legal tender, não propriamente uma moeda soberana, mas legal tender, ou moeda de curso corrente, no sentido de que - e é a nossa definição do euro aqui, por força do Tratado de Funcionamento da União Europeia -, ninguém se pode recusar a receber bitcoin como meio de pagamento para um determinado produto ou serviço. E El Salvador adotou. Há muita gente que tinha sido contra e que criticou, depois com esta volatilidade, lá está, com esse aumento substancial de valor de cada bem, desse ativo, as pessoas agora têm tendência a usar um bocadinho.

Uma situação que quase levou o país à bancarrota...
Não foi por isso, obviamente, há várias teorias. A verdade é que depois também há uma afronta a muitos poderes instituídos, mas também não podemos ir pela parte política. Mas quer dizer - sem fazer uma avaliação da governação de El Salvador ou desta presidência atual -, o facto é que foi uma aposta que tem atraído também muita gente para ir lá viver, muitos nómadas digitais e muitos believers, muita gente que acredita neste tipo de ativo tem ido para lá viver. Enfim, não sou especialista em El Salvador nem na política nacional interna, mas acho que as coisas até têm corrido bem. 

Falou ainda há pouco que uma das razões para este valor mais inflacionado agora das Bitcoins foi a autorização do regulador de mercados dos Estados Unidos, desde o início do ano, para os ETFs, que no fundo são uma espécie de fundos negociados em bolsa de Bitcoin. Explique melhor para o nosso ouvinte que não sabe exatamente o que são os ETFs e o que é que na prática vai acontecer, o que é que mudou.
Queria só fazer uma correção antes. O ativo, a Bitcoin, não está inflacionado por definição e algoritmicamente isso é impossível mudar, a menos que façam outra parecida e já fizeram muitas sem sucesso. O bem em si é deflacionário, o algoritmo é deflacionário, portanto a tendência é essa. O valor não está inflacionado, o valor é aquele que o mercado e que a lei da oferta e da procura estabelece, portanto, não consigo concordar que está inflacionado. Tem muitos fatores externos que influenciam. Vale o que vale, vale o que as pessoas querem dar, vale o preço pelo qual as pessoas o querem vender.

É só de recordar, por exemplo, que em 2021, quando a Bitcoin alcançou o valor histórico que estava até esta data, tinha sido Elon Musk, em declarações, que também levou a uma grande subida naquela altura do valor da Bitcoin.
Sim, pode ser ou pode não ser, isto nunca se sabe. Não é por um mero tweet do Elon Musk que as coisas sobem de valor ou não, quer dizer, pode haver mais apetite, mas se Warren Buffett vier dizer que a Coca-Cola é bom investimento, obviamente também vai fazer influenciar o preço das ações da Coca-Cola. E digo Coca-Cola como qualquer outra empresa onde o Warren Buffett ou outro investidor invista, isto vale o que vale. Boas notícias atraem investimento, más notícias sobre determinado produto ou serviço ou empresa, enfim… Mas isto só para esse ponto, em relação às ETFs, a terminologia é Exchange Traded Fund, basicamente a maneira de funcionar, e para ser muito conciso e fácil de perceber, basicamente compramos partes representativas do underlying asset, do ativo subjacente que é guardado. O que as pessoas fazem é que compram ações, ações ou partes ou unidades desse fundo, e com esse dinheiro, esse fundo, o que faz é adquirir Bitcoin ou através de mercados OTC, over the counter, ou mesmo em exchanges, guarda essa Bitcoin e dá uma parte representativa desse fundo à pessoa. A pessoa guarda aquilo, tem exposição ao ativo, sem o comprar diretamente e sem ter de fazer a custódia por si só. O que pode ser às vezes motivo também de muita gente perder, e já se perdeu muita Bitcoin, dos 21 milhões de Bitcoins que pode haver no máximo, algoritmicamente, grande parte já foi perdida e nunca mais vai ser recuperada, certamente. Portanto, ajuda também a que o preço possa subir, lá está, porque se torna mais escasso. Mas basicamente é isso, o ETF é isso. Agora, a grande vantagem que trouxe é que, para já, abriu as portas a todo o mercado que havia nos Estados Unidos, que até aqui estava vedado porque não tinha nenhum produto que fosse legalmente aceite ou que fosse sólido desse ponto de vista. Agora temos a SEC, que é a nossa CMVM lá do sítio, a autorizar este tipo de produtos, e, diga-se com alguma relutância e após decisões judiciais, em contrário, mas ainda assim foi três para dois em termos de votação e com votos de vencido à mistura e tudo. Mas a verdade é que aceitou, também era difícil ir contra a BlackRock.

Aceitou com cautelas, não é? Dizendo aos investidores que fiquem também cautelosos em relação aos muitos investidores, em relação aos muitos riscos associados à Bitcoin.
Lendo o prospeto percebe-se que tem algumas situações. Lá está, isto é um produto tecnológico, nasce digital e morre digital, portanto, tem as suas cautelas que é necessário que as pessoas tenham noção, mas não quer dizer que haja problemas. A rede tem mostrado bastante resistência desde que foi lançada. 

Como se tem portado o regulador em Portugal. A CMVM e o Banco de Portugal?
A CMVM é muito aberta a estas novas tecnologias e a estes novos mercados. O Banco de Portugal é sempre um bocadinho mais cauteloso. Se bem que são jurisdições completamente diferentes: a CMVM tem um pelouro para instrumentos financeiros; o Banco de Portugal mais do ponto de vista de estabilidade monetária e da moeda. Tenho a ideia, e porque trabalho também muito nestes temas diretamente com os reguladores cá em Portugal, que têm uma abordagem cautelosa, mas ao mesmo tempo acolhem muito bem estas novas iniciativas. E a própria União Europeia, com o regulamento dos mercados em criptoativos, que acaba por ser uma espécie de transposição ou de um copy-paste da diretiva dos mercados financeiros, pelo menos na parte de funcionamento, nas obrigações que têm as empresas que trabalham nesta área, que operam este tipo de produtos em contexto de mercado. Portanto, esse regulamento também vai trazer alguma clarividência e clarificar algumas normas e, no fundo, estabelecer como uma área legitimada, vamos dizer assim, que trabalha com criptoativos. E sei que a CMVM é muito aberta à inovação tecnológica, a novas ideias, a novos produtos e o que interessa é promover o mercado e criar condições de mercado, sempre numa lógica também de proteger um bocadinho o consumidor final. Mas proteger, não no sentido de o impedir de fazer investimentos, mas esclarecê-lo, ou permitir que esteja esclarecido dos investimentos que faz. E é isso que faz falta, penso eu.

Tem havido até agora uma espécie de vazio em relação à tributação dos rendimentos provenientes de criptoativos. Vai avançar este ano essa tributação. A Autoridade Tributária está preparada para arrecadar as mais-valias com ativos digitais?
Não sei se estão já devidamente preparados, mas também não é por falta de iniciativa das associações aqui em Portugal. O que fizemos foi propor a nossa solução de tributação à Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais. Foi acolhida, tivemos várias reuniões, discutimos bastante o tema, explicámos, houve bastante abertura para perceber os nossos receios e considerações. A proposta foi muito bem aceite e tornou-se lei, entrou na Lei do Orçamento do Estado do ano passado. Portanto, vai aplicar-se a todas as mais-valias calculadas durante este ano ou durante o ano transato de 2023.

Ou seja, a primeira vez que vão declarar mais-valias vai ser este ano. 
Exatamente. As que forem, porque as pessoas podem simplesmente ter obtido mais-valias por ativos que já tinham há mais de um ano e aí não há mais-valia, o que é bastante bom, e é um bocado semelhante - e foi essa a nossa ideia também -, àquele regime que tínhamos para as ações, para os valores mobiliários, quando eram detidos por mais de 12 meses, também não se pagava mais-valia.

Não há retroatividade em relação à recolha dessas mais-valias para ativos anteriores? 
Não, a lei tributária, desse ponto de vista, não é retroativa. Imaginemos que eu tinha comprado bitcoin em 2010 e agora queria vender tudo. Então, não pagaria, não havia aí nenhuma mais-valia subjacente. Portanto, acabou por ser muito bom.

E aos contribuintes, aqueles que compraram ou negociaram bitcoins apenas por experiência e que não estão, de facto, ainda cientes de que, no fundo, têm de declarar mais-valias, acha que vai gerar alguma confusão? 
Diria que sim, mas é para isso que xistem os fiscalistas e contabilistas, que sugeria consultarem antes de fazer qualquer tipo de submissão das declarações.

Olhando para o impacto ambiental associado à atividade de mineração, concorda com medidas de penalização desta atividade, nomeadamente em sede fiscal?
Não de todo. Aliás, não concordo com nenhuma medida, até porque há centenas de estudos onde referem o efeito positivo ou benéfico que a mineração de Bitcoin tem, não só na ajuda no balanceamento de rede. O BCE há pouco tempo fez um tweet sobre Bitcoin, a dizer que Bitcoin não era grande coisa e tudo mais e agora, como sabem, há os community notes. E nesse community note que foi apresentado pelos internautas, pelos utilizadores do Twitter, que agora se chama X, foram fazer fact checking a esse tweet e a essa análise que o BCE fez, e entre essas factualidades encontram-se vários factos, vários estudos sobre o impacto positivo que tem, o impacto benéfico que tem a mineração de Bitcoin. Portanto, não concordo de todo que deve haver sequer uma penalização ou que se considere a mineração de Bitcoin como tendo em si impacto negativo, e não terá mais certamente que a utilização agora de GPUs para utilizar nos algoritmos de inteligência artificial, que também já se fala muito nisso, na água que vai gastar e tudo mais. Mas agora vivemos esses tempos, não é? Qualquer coisa tem impacto ambiental.

Em que ponto é que está a aplicação do MICA, que são os mercados de ativos criptográficos, isto na tradução portuguesa de Markets in Cryptoassets, que tem sido um longo processo legislativo, comunitário, para trazer mais transparência e segurança para os investidores neste ecossistema das criptomoedas na zona euro. Em que ponto é que está?
Portanto, o regulamento de mercados em criptoativos já está em vigor. Está agora num hiato de adaptação, não só a nível de cada um dos Estados-membros, que precisa ter uma lei de execução para definir quantidades é que vão ser competentes para fazer essa relação à supervisão. Também depois a parte substantiva relativamente às coimas e multas associadas, portanto, ao elemento sancionatório do próprio regulamento. A verdade é que o regulamento já está em vigor. Só se tornará aplicável, ou seja, é faseado. Torna-se aplicável agora em final de junho a quem queira ser um emitente das chamadas stablecoins ou asset reference tokens, portanto, tokens referenciados a ativos ou tokens referenciados a uma moeda estável, uma moeda fiduciária, neste caso.

E o que é um token?
Um token é uma representação digital de valor. Basicamente é essa a definição, que pode ser transacionada, numa rede ou na internet. Portanto, acaba por ser essa a definição que está no MICA. Um token pode ser muitas coisas. Pode ser um non-fungible token, um token não fungível, que representa, ou seja, o próprio nome indica, não tem esse cariz de fungibilidade, como tem um token de bitcoin, por exemplo, ou de ethereum. Um token pode assumir todas as realidades que queiramos, porque basicamente é uma representação digital de valor e essa representação ou se esgota em si mesma, que é o caso de bitcoin, ou então representa um ativo subjacente. Mas acaba por ser isso. É uma maneira de conservarmos ou de representarmos valor ou um direito sobre algo, de uma maneira digital, e depois transacionada numa determinada blockchain ou numa rede, numa cadeia de blocos. Acaba por ser essa a definição de token. Mas só para terminar a pergunta que me tinha colocado, portanto, para essas entidades que queiram ser emitentes desse tipo de ativos, torna-se aplicável já agora em junho, ou seja, as medidas de supervisão e as obrigações já vão ser verificáveis a partir de 1 de julho, vá. Portanto, quem não cumprir pode ser sancionado. E para os demais operadores de mercado, para todo o resto das obrigações, torna-se aplicável no dia 1 de janeiro de 2025. Depois há aqui nuances. Pode haver aqui períodos onde quem já está registado ao abrigo da lei de branqueamento de capitais pode depois ter aqui um período chamado grandfathering, ou seja, um período de carência onde pode continuar a operar ainda que não seja ao abrigo do regulamento. Mas há muita coisa ainda por esclarecer a nível dos Estados-membros. Esperamos que Portugal, até ao final do ano, lance a sua lei de execução e que permita esclarecer onde é que quem se quiser registar enquanto operador de mercado, enquanto cryptoasset service provider ou prestador de serviços em criptoativos, como é que o faz e em que moldes.

Apesar de isso ainda não estar consagrado, o Banco de Portugal já deixou claro no ano passado em diferentes avisos, que aqueles que prestam serviços de pagamento ou emitem moeda eletrónica realizam serviços que não são regulados e supervisionados e que não beneficiam da proteção dos utilizadores de serviços de pagamentos. Estamos aqui perante um mercado de moeda paralelo ao dinheiro soberano? O mercado dos criptoativos?
Não, porque moeda soberana está definida. Ou seja, não se pode comparar este tipo de moedas às moedas normais que as pessoas usam. Como disse, há vários tokens, há dezenas de milhares de tokens diferentes. Uns não têm mais nenhum propósito do que puramente esse carácter especulativo, outros servem, os chamados tokens utilitários, servem para usarmos como fichas na Feira Popular.  Ou seja, troco os meus euros ou dólares por aquelas fichas da Feira Popular e depois uso para gastar como quiser nas diversões que há na Feira Popular ou pontos de uma rede de supermercados. Enfim, tem essa componente. O token está definido para ser usado dessa maneira, como pagamento para um determinado produto ou serviço que alguém tenha definido. Claro está, posso comprá-lo e achar que aquilo vai ser utilizado por centenas de milhares de pessoas e nunca utilizo aquele produto ou serviço, mas depois aquilo tem um mercado secundário, porque tenho de o comprar de qualquer maneira. E posso guardá-lo puramente com esse fator especulativo. Não quer dizer que esse seja o principal foco da criação do token. 

Aí estamos a falar quer de sapatilhas ou de arte.
Qualquer coisa. Por exemplo, aquelas plataformas que guardam ficheiros ou informação descentralizada, aquilo pode ter um token que uso para aceder ao serviço. Só que aquele token depois é vendido no mercado, numa Binance, numa Coinbase, numa Kraken, e posso adquirir aquilo por lá, porque há alguém que tem aquele token e que me quer vender a um determinado preço. E assim abre todo o mercado secundário. Procura e oferta. Mas aquilo funciona puramente como uma feira da ladra de tokens onde as pessoas compram e vendem de uma maneira algo livre. Agora, lá está, cumprindo a legislação de anti-money laundering para prevenção de branqueamento de capitais e tudo mais, as pessoas identificam se têm uma conta. Mas depois compro e vendo aquilo que quiser. E se quiser, uso esses tokens num determinado produto ou serviço.

Mas essa liberdade, essa feira da ladra, não potencia um mercado de fraude?
Em que sentido? Mais do que a moeda fiduciária, dificilmente. Quer dizer, a maior parte de fraude, de evasão fiscal ou de compra de coisas ilícitas é feita em grande escala com euros e com dólares. Não vejo as mesmas questões a ser colocadas desse ponto de vista. Isto é uma franja muito, muito pequena. E há vários estudos sobre isso. É uma franja muito, muito pequena da utilização deste tipo de ativos para fins ilícitos, apesar de ser outra pedra de arremesso também bastante utilizada. Mas depois os dados e a factualidade comprovam exatamente o contrário.

À Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas chegam muitas queixas de pessoas burladas, enganadas, que se sentem defraudadas?
Infelizmente, sim. Mas, lá está, não por nada que esteja diretamente relacionado com a tecnologia ou este tipo de ativo. Sempre houve burlas na sociedade, desde que haja uma assimetria de informação. Há alguém que sabe mais sobre um tema, está mal-intencionado e comete esse crime. Tanto que o crime de burla está tipificado, pelo menos no nosso Código Penal, desde os anos 1980. E não havia sequer internet nos anos 1980. Portanto, não é uma coisa que esteja aqui reduzida ao mundo dos criptoativos. Infelizmente, há muita gente que é defraudada. Que é defraudada por criminosos e nós tentamos ajudar dentro do possível. Mas é o chamado conto do vigário. Também tivemos a Dona Branca, também era um conto do vigário. As pessoas vão à espera de dinheiro fácil ou de lucros fáceis e rápidos e de enriquecer da noite para o dia. E, como em tudo na vida, isso é muito complicado. Portanto, sem trabalho, sem investigação, sem estudo, é difícil alguém enriquecer. A menos que tenha um golpe de sorte. E o que acontece é que há muita gente que vai nessa ânsia desse enriquecimento rápido e se deixa depois levar por qualquer tipo de fraude.

Qual é a radiografia do setor? Quantas empresas estão ligadas aos ativos virtuais e quantos trabalhadores empregam em Portugal? Sabe dizer-nos?
Não consigo dizer os números exatos. Aliás, está a ser feito esse estudo para fazer o levantamento e a fotografia efetiva do nosso ecossistema em Portugal.

Há quanto tempo é que está a ser feito o estudo?
Já há algum tempo. Está para sair muito em breve. 

Pelo menos em 2022, quando falou connosco, tinha-nos dado essa indicação de que estavam a fazer um estudo. Portanto, já há quase dois anos que estão a fazer esse estudo.
Sim, está para sair muito em breve o resultado desse estudo e depois vai ser devidamente noticiado. A APBC é parceira, não é promotora do estudo, mas é parceira e tem ajudado e tem contribuído. E esse estudo vai servir para perceber e para tirar uma fotografia clara do número de empresas. Posso dizer assim por alto que já temos muitas empresas em Portugal que trabalham neste tema e temos uma comunidade muito grande também que trabalha nesta área. Temos também tido, e a Quatrecasas foi parceira também com outras entidades na criação do Web3District em Lisboa, com a Câmara Municipal de Lisboa. Portanto, tem havido essa crescente procura também por Portugal para desenvolver estes temas.

A questão da literacia financeira é fundamental neste domínio. Nesse âmbito, tem sido muito falada ultimamente a questão da recolha de dados biométricos a partir de imagens das íris em centros comerciais em troca de worldcoins, que é uma moeda digital. Isto mostra a iliteracia nesta matéria?
Não queria falar em concreto desse tema, até por razões profissionais.

Mas o caso de a Comissão de Proteção de Dados ainda não ter emitido nenhuma nota relativamente a esta matéria, ao contrário daquilo que foi feito em Espanha, o que diz sobre isso?
Isto não está muito ligado. A parte dos criptoativos é aqui muito residual. Isto levanta outros temas de cibersegurança, de privacidade, de proteção de dados pessoais e até do próprio Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. O que se tem de avaliar é efetivamente que medidas de segurança é que são adotadas, como é feita essa recolha. Os criptoativos aqui acabam por ser secundários. Mas, pelo menos, já se vê uma mais-valia. Normalmente, cedemos os nossos dados gratuitamente a grandes empresas tecnológicas sem pensar onde é que eles vão dar, ao menos aqui as pessoas são pagas por eles. Mas não sei, não consigo pronunciar-me, porque também não tenho os elementos necessários.

Os provedores de serviços de ativos virtuais queixam-se da dificuldade na abertura de contas nos bancos portugueses. Temos uma banca tradicional que não é cripto-amiga, por assim dizer?
Posso dizer que sim, mas também não é muito amiga, diga-se de passagem, do consumidor tradicional. Acho que tem de se revitalizar e tem de se digitalizar e adaptar-se aos novos mundos e ao novo perfil de consumidor final. Temos muita coisa que ainda é feita de uma maneira demasiado burocrática. Temos muita pressão das fintechs que acabam por ser muito mais ágeis na maneira como operam este negócio da banca tradicional. Acho que tem de haver essa adaptação. Em relação aos criptoativos, tem sido algo sobre o qual a associação tem manifestado o seu desconforto.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt