Doze meses depois do lançamento da versão mais barata com anúncios, num ano com o despedimento de mais de 400 empregados e um corte de orçamento na ordem dos 300 milhões de dólares, a Netflix encontra-se surpreendentemente bem. 2023 foi um ano estranho para empresas na intersecção entre tecnologia e entretenimento, que a Netflix encarna melhor que qualquer outra.
Houve duas greves longas, primeiro de argumentistas e depois de atores, que suspenderam as produções na segunda metade do ano. Houve uma explosão de aplicações de Inteligência Artificial generativa, que abriu as portas para uma mudança da forma como os conteúdos são pensados e produzidos. Houve fenómenos de bilheteira intercalados com falhanços desastrosos, que levaram os analistas da indústria a vaticinar o fim da era dourada dos super-heróis.
E entre as dúvida sobre a sustentabilidade do modelo do streaming, a expectativa de consolidação no segmento e a mudança de regras de elegibilidade de filmes para os Óscares - que obriga a passagens mais duradouras dos filmes em salas de cinema - está montado um circo a que muitos não estão a achar qualquer piada.
Mas esse não é o caso da Netflix neste momento. Devido à sua operação internacional de criação de conteúdos, a greve em Hollywood foi colmatada com uma torrente de filmes e séries internacionais, demarcando o serviço dos demais nesta época de paragem.
Por outro lado, a versão com anúncios revelou-se um sucesso, contra as expectativas de muitos (incluindo eu) e ajudou o serviço a recuperar da hemorragia de assinantes que sofreu no ano passado.
E com uma avidez transparente por singrar na temporada de prémios, a Netflix consegue este ano provavelmente o seu melhor portfólio de sempre em busca de estatuetas: "Maestro", realizado e protagonizado por Bradley Cooper, é um claro concorrente a Melhor Filme. "May December", com Natalie Portman e Julianne Moore, está na mesma lista de potenciais. "American Symphony", "The Killer", "Nyad" (um regresso estrondoso de Jodie Foster) e "Rustin" (com canção original de Kenny Kravitz) também aparecem na linha da frente. São filmes ambiciosos, portentosos, que pertencem mais ao grande ecrã que ao cinema em casa. A Netflix está claramente a jogar na Primeira Liga.
Os prémios são importantes para um serviço que precisa de justificar, mês a mês, porque deve ser escolhido em detrimento de outros. A Apple TV também tem argumentos fortes este ano - destaque para o épico "Assassinos da Rua das Flores" de Martin Scorsese e com Leonardo DiCaprio, "Flora and Son" com Joseph Gordon-Levitt e Eve Hewson (filha de Bono Vox), e "Napoleão" de Ridley Scott. A Amazon Prime Video, que adquiriu a MGM em 2022, aparece forte com "Saltburn" e "Air", a história verdadeira dos Air Jordan da Nike com realização de Ben Affleck.
Há tantos serviços por onde escolher que a fidelização se tornou mais difícil de conseguir. É por isso que os resultados financeiros mais recentes da Netflix são notáveis. A empresa surpreendeu os analistas em Outubro ao adicionar 8,76 milhões de assinantes no terceiro trimestre, bem acima do que Wall Street previa e o segundo maior ganho da sua história. Tem agora 247,115 milhões de assinantes, distribuídos por várias camadas de preços.
A estratégia de restringir a partilha de passwords e adicionar uma versão com anúncios funcionou - só neste trimestre, o número de assinantes desta modalidade cresceu 70%. As receitas e os lucros subiram de forma significativa. Não há, feitas as contas, outro serviço que consiga rivalizar com a escala do Netflix.
O que há é uma questão fundamental sobre não apenas o futuro deste segmento, mas de toda a indústria do entretenimento. Nenhum estúdio ou empresa parece ter conseguido acertar totalmente na fórmula. Aliás, há motivos válidos para atribuir à Netflix responsabilidades pela deterioração do modelo de negócio e da compensação dos artistas que motivou as greves em Hollywood.
Não deixa de ser irónico que uma das empresas que liderou o movimento de economizar ao "cortar os cabos" e despejar séries inteiras de uma vez para ver de forma ininterrupta esteja agora a adicionar anúncios e a aumentar os preços. Livrámo-nos de uma forma de ver televisão e criámos outra que está a tornar-se similar à primeira. Os nomes dominantes do mercado é que mudaram.
E o que ficou claro neste ano inesperadamente doce para a insígnia liderada por Ted Sarandos e Greg Peters é que, se alguém está perto de descobrir a receita ideal, é mesmo a Netflix. A temporada de prémios deverá confirmá-lo.