A evasão, a elisão e, em alguns casos, a fuga aos impostos com motivos criminosos através da transferência de capitais e rendimentos para territórios fiscais mais leves e vantajosos do ponto de vista tributário foi um dos fenómenos que levou ao agravamento das desigualdades durante e na sequência da grande crise financeira e da grande recessão que marcaram o final da década passada e que cujos efeitos ainda hoje perduram. O aumento da desigualdade, um problema que já vinha de trás, desde os anos 90 do século passado, piorou com a crise.
Quem conseguiu enviar riqueza para longe do alcance dos governos (que tiveram de pagar a crise e a falência de bancos, por exemplo) ficou relativamente isolado face ao forte impacto nos rendimentos provocado pelos cortes na despesa social e pelos aumentos de impostos.
As mais pobres e largas camadas da chamada classe média, trabalhadores e pensionistas, ficaram capturadas nos seus territórios de residência e foram os contribuintes que, em larga medida, financiaram a estabilização das economias e da dívida pública. O preço foi alto: desemprego, cortes salariais e de pensões, menos apoios sociais.
Esta crise financeira/económica, na sua forma mais aguda, foi sendo lentamente resolvida, mas, afastado o risco de colapso de alguns Estados soberanos europeus e garantida a retoma a partir de 2015, outros motores do aumento das desigualdades ganharam força, cavando mais fundo o fosso entre os poucos muito ricos e todos os outros, menos abonados, que são a imensa maioria.
Motor 1
O motor das alterações climáticas não é propriamente novo. A sua ignição aconteceu há muitos anos, com a idade do petróleo e ganhou tração com a entrada da China na grande ordem do comércio mundial (adesão gradual à OMC nos anos 2000). A produção massiva da China e das empresas ocidentais lá baseadas por causa dos baixos custos e baixos salários, a forte base motriz do país em energias fósseis (petróleo e carvão) combinada com a sua enorme população conduziram num ápice à ascensão de uma nova e expressiva classe média e consumidora.
Foi o empurrão que faltava para encetar uma nova fase, mais destruidora, na degradação do clima global. China e não só. Índia e a maioria das economias baratas e pobres do sudoeste asiático juntaram-se à fileira.
O Banco Mundial teme que nas próximas décadas a alteração rápida do clima e os desastres naturais a ela associada, como secas prolongadas, tempestades mais frequentes e destruidoras e a subida do nível das águas, possam apagar os "progressos" alcançadas nas décadas precedentes, que permitiram tirar da pobreza milhões de famílias em todo o mundo.
Segundo esta mesma instituição, as alterações climáticas podem empurrar para uma situação de pobreza 100 milhões de pessoas nos próximos dez anos. E gerar um número incalculável de novos refugiados à medida que a terra vai sendo inundada pelo mar e que as secas vão esterilizando as fontes de sustento de inúmeras populações por esse mundo fora.
Já há dados sobre isso, aliás. O furacão Mitch, o segundo maior alguma vez registado até hoje, devastou vários países da América Central, causando mais de 19 mil mortos. Mas o seu rasto foi maior e ainda hoje perdura.
"Quando ocorrem choques climáticos, os pobres normalmente perdem uma parte maior da sua riqueza", defende Bridget Hoffmann, economista do Banco Interamericano de Desenvolvimento, num estudo recente.
"O furacão Mitch destruiu 18% da riqueza do quintil mais pobre das Honduras, em comparação com apenas 3% do quintil mais rico. Essas perdas díspares de riqueza traduzem-se em reduções desiguais no consumo", observa Hoffman.
"Os pobres têm menos capacidade de lidar e recuperar dos impactos negativos dos choques climáticos. Os mais pobres têm menos recursos financeiros porque as suas redes sociais - ou sistemas de apoio - também tendem a ser pobres e porque têm menos acesso a formas formais de poupança, crédito e seguros", remata.
Motor 2
Também implicou choques agudos à escala global: a pandemia, que embora mais leva, ainda não acabou. Apesar da sua natureza única e imprevisível, as consequências da covid-19 vão ser duradouras e inquietam cada vez mais os analistas, alguns políticos e muitas grandes instituições internacionais. O BCE fala disso, o FMI mais ainda.
A pandemia atingiu com maior severidade os mais pobres, claro. Por não terem um acesso garantido e estável a cuidados de saúde e, na atual fase, a vacinas. Também foi pior para estas pessoas porque os confinamentos decretados pelos governos impediram muita gente de trabalhar, de ganhar o seu sustento. Apesar dos apoios públicos, muitas empresas não resistiram, sobretudo as que mais dependiam do trabalho presencial e de contacto humano mais direto. Com elas desaparecem e ainda vão desaparecer milhares ou milhões de empregos. Mais empresas deverão encerrar nos próximos meses à medida que forem cessando as linhas de salvamento dos governos.
Num artigo recente, Vítor Gaspar e Gita Gopinath, dois altos dirigentes do Fundo Monetário Internacional, observaram que "as diferenças no acesso às vacinas e na capacidade de implantar políticas de apoio estão a criar uma divergência crescente entre as economias avançadas e muitos mercados emergentes e economias em desenvolvimento".
Esses países, já de si pobres, estão agora encostados às cordas. Sem acesso completo a fontes de financiamento a preços decentes, com orçamentos frágeis e limitados e a sofrerem com uma grave carência de vacinas, o FMI diz que nestas partes do globo a divisão entre mundo rico e mundo pobre vai ser "crescente" e que neste cenário "a covid-19 continuará a ceifar vidas e a destruir empregos, infligindo danos duradouros no investimento, na produtividade e no progresso desses países mais vulneráveis".
Se nada for feito, partes do mundo onde vivem muitos milhões de pessoas arriscam afundar na "pobreza extrema e na fome".
Para FMI, Organização Mundial da Saúde, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio, para sair da beira do abismo que é o avanço rápido da desigualdade e da pobreza aguda e mortal, é preciso pelo menos vacinar 40% da população em todos os países até o final de 2021 e 60% até meados de 2022.
Num mundo com mais de 190 países e territórios, atualmente apenas 20 registam uma taxa de vacinação completa de 70% da população ou mais. Muitos são ricos e do clube dos desenvolvidos. Canadá, Islândia, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Espanha, Irlanda, Bélgica e Portugal são alguns dos líderes neste ranking, segundo o site Our World in Data.