O setor automobilístico vive uma crise sem precedentes em escala globalizada. Por um lado, a mudança de hábito dos jovens em relação a compra de um automóvel, por outro, a substituição da matriz energética, que vai consumar o desaparecimento de outras tantas indústrias. O Brasil, com um parque industrial em crise, já colhe os frutos de seu desprezo pelo setor ao longo dos últimos anos.
A Ford, que foi a primeira montadora a se instalar no Brasil, em 1919, anunciou o fechamento de suas fábricas no país. São três plantas sendo que duas delas encerram as atividades imediatamente: são aquelas instaladas nas cidades de Camaçari, estado da Bahia e em Taubaté, no estado de São Paulo. De seguida, mas ainda neste ano de 2021, também apagará as luzes a planta da cidade de Horizonte, no Ceará. É um cenário terrível.
O encerramento do parque industrial da Ford após mais de um século em operação vai extinguir cerca de 5 mil empregos diretos. Mas a conta é muito modesta. Uma montadora carrega ao seu entorno incontáveis pequenas e médias industrias do setor de autopeças que fornecem direta e exclusivamente para a montagem de seus veículos.
São as chamadas industrias "satélite", que produzem peças específicas, feitas sob medida e dentro dos padrões daquela montadora, daquele projeto, daquele veículo - como exemplos podemos citar a lanterna traseira, o farol dianteiro, a maçaneta da porta, o espelho interno, a iluminação, o friso, o botão que liga o ar condicionado e, até mesmo, o equipamento de ar condicionado, os bancos, encostos de cabeça, fiação elétrica, forração das portas e por aí vai. Nenhuma dessas peças se encaixa em outro veículo. Quando a montadora diz que vai encerrar a sua produção, a maquinaria, as matrizes, os moldes ou ferramentas com essas medidas específicas, pertencentes às indústrias fornecedoras que investiram pesado nelas, viram sucata. Lixo. Só na cidade de Camaçari, na Bahia, o problema vai alcançar cerca de 16 mil empregos, segundo autoridades locais.
Se falo em 16 mil empregos não estou a dizer vagas. Esse mercado é restrito e exíguo. São poucas as montadoras, com cada vez menos trabalhadores e mais robôs. Não será possível uma recolocação. O trabalhador vai ter de buscar uma nova atividade. Isso é terrível e nos enfia a todos numa espiral de descontrolo, aliado à desesperança por um futuro que ninguém, nem sociedade, nem governo, sabe onde vai dar.
Essa indústria está a sofrer desde a década passada, isso não é segredo. Mas o cenário atual é de arrepiar os pelos da face, aqueles sob os olhos, com duas transformações que haverão de sacudir ainda mais esse universo de empregos: a matriz energética e a nova geração de consumidores - que não herdou a paixão que seus pais tinham por carros próprios. Eles querem usufruir, sem necessariamente possuir. Mas há quem prefira uma bicicleta, com seu custo quase zero. Menos carros irão para as ruas, opções de uso compartilhado estão a crescer.
Já a substituição de motores a combustível por elétricos, também acarretará um grande sacode na indústria. Um motor a combustão é montado com diversas peças cuja origem está em variados fornecedores - voltamos àquelas indústrias satélite. São peças específicas, de encaixe exclusivo. Um carro elétrico usa infinitamente menos componentes em sua montagem. Quando os motores deixarem de ser fabricados o número de desempregados só fará crescer e isso não vai demorar uma geração. Não acontecerá em 50 anos. No Reino Unido os carros a combustível têm morte declarada para 2030, estarão proibidos em apenas nove anos. Nove anos passam num piscar. Se os governos não se movimentarem agora, não haverá solução para toda essa gente.
Senadores brasileiros foram às redes, a replicar fala do presidente Jair Bolsonaro que cobrou a empresa por ter-se beneficiado de aproximadamente R$ 20 mil milhões de incentivos ao longo dos últimos 20 anos. Como resolveu sair de forma abrupta, teria de devolver parte desse dinheiro que "encheu seus cofres". Não é exatamente assim que funciona. Diversas vezes a sede americana teve de socorrer a operação brasileira a injetar dinheiro em contas que não fechavam. Desde que isso teve início, estava claro que havia um problema para a Ford nesse mercado. Mas esse é um problema da Ford, diria a General Motor - que está aí, firme e forte, mesmo depois de quase quebrar nos EUA há poucos anos.
Quem imagina ser o encerramento da Ford no Brasil uma boa notícia para a concorrência GM, Fiat, Hyundai etc, engana-se. Evidentemente essas marcas irão ocupar o market share abandonado pela Ford, especialmente a Chevrolet com seu portfolio amplo. Entretanto, perder um concorrente de nível nunca é bom por vários aspetos. Para o trabalhador, reduz as possibilidades de transição no mercado, o que limita o seu poder de negociação com o patrão. Para a operação como um todo, cria uma situação perigosamente cómoda. Um concorrente à altura estimula o desenvolvimento e a busca por melhor desempenho. Disputa o mercado, o que obriga a melhorar as práticas de vendas. Disputa a atenção do consumidor, o que obriga a empresa a ampliar sua rede de relacionamentos, especialmente pós-vendas. Ninguém melhor para estimular o aprimoramento de uma empresa do que um grande concorrente.
Mas Ford está fora e o Brasil, sem projetos, sem política de geração de empregos e investimentos, a ignorar que possui uma indústria poderosa, mas grande parte dela sucatada há anos, não poderia esperar que a fatura nunca chegasse. Ao longo dos últimos anos as promessas que se seguiram foram de retomada do crescimento via reformas trabalhistas e da previdência. Anunciaram que elas mudariam o retrato do país de forma a exterminar o desemprego. Foram aprovadas. O que vemos hoje é mais desemprego e o aumento da desigualdade.
Foi trampolim para políticos que aí estão, entre eles Bolsonaro. Seu ministro da economia, Paulo Guedes, não conseguiu mudar nada até agora, enquanto o presidente com sua conduta desastrosa de governo negacionista, aliado a Trump, só faz desestabilizar e deteriorar a credibilidade internacional. O chamado "Custo Brasil" transforma qualquer projeto dos sonhos em pesadelo do qual não se acorda jamais. Pode ser um projeto de uma família, ou de uma indústria, o "Custo Brasil" acaba com todos. Tudo fica inviável. Se eu tivesse a opção de pegar na minha família e, como a Ford, mudar-me para a Argentina... eu pensaria bem e iria para Portugal, claro. Mas sairia deste país que a cada dia parece estar mais próximo do precipício com uma sociedade abduzida como aqueles seguidores do Trump que invadiram o Capitólio.
Em que pese os benefícios que a Ford recebeu, entre eles isenções de impostos federais, estaduais, doação de terreno para sua planta na Bahia e acesso a empréstimos com juros camaradas, o fato de a empresa deixar o país é sinal de que algo muito ruim está a acontecer nesse governo sem planos, sem diálogo e com um presidente mais preocupado em brigar diariamente com a imprensa do que organizar a vida de seu eleitorado. Bolsonaro já se manifestou a respeito e desdenhou de mais essa derrota do país. Segundo ele, a Ford não disse a verdade, "eles queriam mais subsídios". Só não citou em qual reunião a empresa formalizou algum pedido. Esqueceu-se de citar, também, que a Ford vai investir R$ 3 mil milhões na Argentina e que esse dinheiro poderia estar a ser injetado na economia brasileira. Será que eu deveria ter marcado uma reunião com as montadoras para entender suas necessidades, já que é um setor importante na saúde da economia? Eu ou o governo? Por que se não é função do governo zelar pela economia e pelos empregos que geram riqueza e consumo, de quem é?
O Brasil é um país de grandes cenas: tem mais de 200 mil mortos, 14 milhões de desempregados e uma das mais importantes montadoras de veículos do mundo a deixar seu território para desembarcar em dois países vizinhos (Uruguai e Argentina). Quem acha que isso é normal, ou culpa da "gananciosa" Ford, preste atenção no nariz vermelho que está a usar desde a eleição, quando o seu candidato não compareceu a um único debate para explicar o que faria com a economia. Não podem reclamar, é verdade. Nada prometeu, nada fará. Apenas armas, isso temos, ele prometeu.
Até o vice-presidente Hamilton Mourão declarou que a Ford poderia ao menos ter esperado passar a crise. "Acho que a Ford ganhou bastante dinheiro aqui, né?", disse Mourão, "Me surpreende essa decisão. Eu acho que a empresa poderia ter retardado isso e aguardado, até porque o nosso mercado consumidor é muito maior do que outros por aí". Mas o próprio governo acaba de anunciar que vai fechar 361 agências do Banco do Brasil (BB) e que criou um plano de demissão voluntária prevendo o desligamento de cinco mil empregados. Mesmo número de trabalhadores desligados da Ford que o governo condena. É o mais autêntico "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Assim como os trabalhadores da Ford, esses do Banco do Brasil terão de se reinventar. Não vão mais trabalhar em banco. Se é acertada ou não a manobra para enxugar números do BB não importa, o que precisamos lembrar é que isso poderia esperar um pouco mais para acontecer, como disse o vice-presidente sobre a Ford.
No Brasil o esforço é manter a vice-liderança mundial na morte por Covid-19, em gerar confusão na mente da população com o presidente a dizer que a vacina não é confiável, em continuar a ignorar o enfraquecimento de seu parque industrial, em jogar a culpa nos media. O Brasil tem-se esforçado para ser um país muito menor em todos os sentidos. Ainda vai conseguir. A culpa, convenhamos, não é da Ford, que continuará a vender alguns de seus produtos no Brasil, com adn Argentino. A culpa não é do Bolsonaro, todos sabíamos o que ele tinha a oferecer: nada. A culpa é de quem votou nele e que hoje amarga o desemprego. Não adianta chorar, Inês é morta.
Jornalista designer brasileiro