O FMI não é a santa casa

Fala-se em crise de identidade e em dores de crescimento. Os bancos centrais relativizaram a importância do FMI na ajuda aos soberanos. E a China pesa cada vez mais na grande ordem mundial herdada de Bretton Woods, correndo atualmente suspeitas de tráficos de influência que afetam o nome Georgieva, antes líder do Banco Mundial, hoje à frente da instituição de Washington.
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O Fundo Monetário Internacional (FMI) está numa encruzilhada. Anos depois de ter "ajudado" a salvar vários países ditos ricos da bancarrota e de ter sobrevivido a várias convulsões e fricções nas suas lideranças, a instituição sediada em Washington parece estar a viver um dos momentos mais difíceis da sua já longa existência.

Fala-se em crise de identidade e em dores de crescimento. Tem a atual diretora-geral no centro de um furacão de críticas e de um escândalo de alegado tráfico de influências para supostamente favorecer a China. E tem a China a mandar cada vez mais no Banco Mundial, a organização irmã do Fundo. O mundo mudou. E os pilares de Bretton Woods, também?

Mas vamos por partes. Primeiro, a parte do dinheiro. A verdade é que o muito dinheiro que o FMI pode despejar nas economias pelo mundo fora é hoje materialmente menos importante, por assim dizer, para grande parte dos países avançados.

Também aqui o mundo mudou a partir do momento em que os bancos centrais entraram em ação e passaram a disponibilizar quantidades torrenciais de financiamento barato a custo zero ou mesmo negativo.

Foi inaugurada a era das bazucas. A Reserva Federal liderou logo da forma expedita que lhe é reconhecida, o Banco de Inglaterra e o Banco do Japão acompanharam e alargaram os cordões à bolsa. O Banco Central Europeu, mais relutante e acanhado pela moral alemã, lá acompanharia os colegas, ainda que com atraso. O custo do dinheiro já não é o que era. A artilharia pesada do FMI também não.

Não há muito tempo, é preciso recordar que o Fundo teve um papel decisivo na resolução ou amenização da crise da dívida soberana que assolou vários países da zona euro na década passada.

Sem instituições capazes de lidar com os ataques agressivos dos especuladores e sem dinheiro logo disponível para deter o tsunami das taxas de juro cobradas ao contribuintes a subirem em flecha, os europeus aceitaram a "ajuda" pronta-a-disparar do Fundo. Problema: o pacote vinha com medidas de austeridade, muitas delas pouco amigas dos contribuintes, e os preços dos empréstimos eram tudo menos sociais.

Mas Portugal entrou em bancarrota no final de 2010, início de 2011, e precisou de 78 mil milhões de euros para se tentar endireitar. Destes, o FMI disponibilizou um terço, cerca de 26 mil milhões de euros. Os outros dois terços vieram da Comissão Europeia e do resto da zona euro. Na altura, foi o que se arranjou para travar o dominó que deitou abaixo Grécia, Irlanda, Portugal e que fez tremer Espanha, Itália e, imagine-se, até França.

Duas vezes mais caro

O preço era e foi alto. A pressa para fugir de uma ameaça num beco sem saída tem destas coisas. Segundo a agência da dívida pública portuguesa (IGCP), a taxa de juro "all in cost" da parte do pacote de resgate que cabia ao FMI, portanto o custo global final em juros, chegou a uns impressionantes 4,9%.

Ainda assim, era bem menos que o custo que um país pequeno e sem recursos como Portugal teria de suportar se tentasse ir aos mercados nessa altura, entre 2010 e 2013. As taxas de juro impostas ao soberano, cujo rating estava no lixo (estatuto junk, especulativo), podiam facilmente chegar a 10% ou mais. Eram impraticáveis.

Mas também nessa altura ficou claro que, se a Europa se organizasse, podia ir aos mercados buscar verbas a um custo mais decente para aguentar os Estados-membros em apuros, usando para tal instituições de rating máximo (AAA).

Foi dessa ideia que nasceu o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM, na sigla em inglês), o futuro fundo da zona euro, atualmente estabelecido no Luxemburgo. E ficou logo evidente nos primórdios desta nova entidade que o custo era bem mais baixo.

Na altura em que o FMI cobrava quase 5%, o ESM custava menos de metade disso. Com o tempo, o fosso aumentou. Portugal ainda tem uma dívida gigante ao mecanismo da zona euro, é certo, mas pode demorar 20 anos a pagar o empréstimo com um custo global médio de 1,4%. Uma pechincha, como se costuma dizer.

Reputação e crescimento

Mais dispendioso vai ser reparar os efeitos destrutivos das crises nas economias (primeiro a da grande recessão, agora a da pandemia), sobretudo as mais pobres e, ato contínuo, os danos de reputação infligidos recentemente contra a líder do FMI e ex-presidente executiva do Banco Mundial, a economista búlgara Kristalina Georgieva.

Há uma investigação interna em curso para apurar se Georgieva e o então presidente (chairman) do BM, o sul coreano Jim Yong Kim, fizeram favores à China e abrilhantaram o gigante asiático nos conhecidos rankings da competitividade mundial (os famosos Doing Business).

Está em dúvida a integridade das edições Doing Business de 2018 e 2020. E se estas alegadas manobras foram moeda de troca para que a China injetasse capital novo no Banco Mundial necessitava, em 2018, por exemplo.

Na altura, a China lá fez um precioso reforço de 13 mil milhões de dólares (mais de 11 mil milhões de euros ao câmbio atual). Serão estas as dores de crescimento de que se fala? Serão elas inevitáveis para que os pilares de Bretton Woods continuem a funcionar?

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