O lado escondido do vírus criou uma pobreza que não sabe pedir ajuda

Trabalhadores a recibos verdes, classe média habituada a viajar, profissionais de artes e espetáculos foram contagiados. Sem rendimento, não sabem como pedir ajuda
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Chegou de repente e com estrondo. Não permitiu que as famílias se preparassem, não anunciou quando iria permitir ganhar oxigénio, nem deixa perceber quando será possível respirar de alívio. A crise que a pandemia provocou contagia as famílias em Portugal há um ano e criou uma realidade que até aqui não se conhecia: há uma pobreza envergonhada que não sabe como pedir ajuda. O fim das moratórias é um dos maiores receios para os prestadores de apoios sociais, que alertam para necessidade de cautelas para não haver uma escalada dos problemas sociais.

Os primeiros casos de covid-19 registaram-se em março de 2020; a partir daí, a evolução da situação entrou em velocidade cruzeiro e o primeiro estado de emergência foi decretado a 19 de março. Até então, o país registava crescimento económico, tinha fintado o défice e melhorava nas estatísticas do emprego. O setor turismo estimava no final de fevereiro que lhe faltava cerca de 40 mil pessoas para fazer face à procura. Mas o invisível vírus que chegou da China mudou a sociedade e a economia: o PIB afundou e o desemprego subiu, apesar da almofada dos vários mecanismos públicos que o impediram de escalar para dois dígitos (como nota o líder da UGT em entrevista o Dinheiro Vivo). Os rendimentos de muitas famílias caíram e os pedidos de ajuda subiram. Não é a primeira vez que Portugal atravessa uma crise. Mas esta é diferente.

Natália Nunes está à frente do gabinete de Apoio ao Sobre-endividado da Deco desde 2002 e não tem dúvidas que esta crise "é diferente a vários níveis" da de 2010/2012: "Em 2012, vínhamos desde 2008 em crise. De certa forma, houve um tempo para as famílias se prepararem para a crise e o impacto que veio a ter do ponto de vista económico. Esta crise não. Veio de um momento para o outro", lembra, e apanhou desprevenidas "famílias que estavam perfeitamente confortáveis do ponto de vista financeiro no início de 2020 e que, de março a esta parte, foram confrontadas com uma redução significativa dos rendimentos. Diria que é uma crise totalmente diferente: pelas famílias que afetou e pela forma como as famílias foram confrontadas pela rutura dos rendimentos", remata.

Pedir ajuda sem saber como
Desde o anúncio de que Portugal iria entrar em confinamento, o primeiro, em março do ano passado, até ao fecho de lojas, restaurantes e escolas, passaram-se poucos dias. Trabalhadores independentes, pessoas com segundo emprego, profissionais das artes e do espetáculo, entre outros, assistiram com o fechar das portas a um ponto final nos seus rendimentos. Até então, o que ganhavam permitia-lhes uma vida confortável. De um momento para outro precisaram de pedir ajuda. E nem sabiam bem como.

"No último ano, aquilo que verificámos foi que, de um momento para o outro, houve um acréscimo enorme de pedidos de apoio de alimentos. Muitos por parte de pessoas que não estavam habituadas a lidar com uma situação de pobreza. Verificamos que de repente houve pessoas que ficaram sem nada. Em abril e maio, houve logo um grande número de pedidos, depois houve o verão em que [a situação] acalmou, porque, apesar de tudo, a restauração e hotelaria recuperou um pouco, houve viagens", diz Isabel Jonet, do Banco Alimentar. "A partir da última semana de setembro, verificámos de novo um acréscimo grande de pedidos e não parou. Voltou, outra vez, a haver muitos pedidos", acrescenta.

Para se ter uma ideia, os 21 bancos alimentares existentes em Portugal davam apoio a 380 mil pessoas em janeiro de 2020. No final de maio já estavam a responder às necessidades de mais 60 mil pessoas. Os pedidos subiram, mas a capacidade angariação de produtos básicos diminuiu, em especial porque não foi possível fazer a campanha habitual em maio. O caminho passou pelos canais digitais e pelos vales. E quando foi lançada pelo Banco Alimentar, a Rede de Emergência Alimentar conseguiu a angariação de donativos que foram canalizados para a compra de produtos alimentar básicos.

O desemprego não registou uma subida acentuada, mas houve quebra de rendimentos. Os profissionais que na primeira vaga foram colocados no regime de lay-off simplificado perderam 33% do seu salário; e muitos perderam um segundo emprego. Os dados do INE, como já noticiou o Dinheiro Vivo, mostram que a crise sanitária deixou sem segundos empregos quase 37 mil trabalhadores em 2020. Trata-se da primeira descida, depois da recuperação económica iniciada após a crise das dívidas soberanas.

A Cáritas também tem assistido a um aumento de pedidos de socorro. E não só alimentar. Esta organização ligada à Igreja Católica ajuda também no pagamento de algumas despesas. José Cordeiro assume que em ajudas diretas, nomeadamente para habitação, saúde e eletricidade já foram apoiadas pessoas no valor de 125 mil euros neste último ano. "A somar aos 125 mil euros para ajuda em habitação, saúde e eletricidade, só em vales para a compra de bens essenciais, a Cáritas já distribuiu também cerca de 83 mil euros. Isto são ajudas diretas para pessoas que, fundamentalmente, perderam o trabalho ou os rendimentos".

Com um peditório em curso, José Cordeiro não deixa de notar que "são situações novas e que têm deixado alguma preocupação, não só pela situação em que a pessoa se encontra, mas também na preparação para este desconfinamento, porque não se sabe se as pessoas vão continuar nesta circunstância". O responsável acrescenta ainda que, se têm de apoiar o pagamento da habitação, é porque não conseguiram recorrer a moratórias "o que é gravíssimo". E questiona: "o que poderá vir aí com o fim das moratórias?!"

Outra dimensão desta conjuntura é a psicológica. Isabel Jonet não tem dúvidas que o desafio psicológico, quer para instituições, quer para as pessoas que "não estão habituadas a recorrer a ajudas sociais. Não sabem; não conhecem os canais dos apoios sociais. São pessoas que nunca estiveram numa situação de pobreza, às vezes quase extrema - porque houve momentos em que ficaram quase com uma total ausência de rendimentos ou remunerações. A Rede de Emergência Alimentar, que é uma plataforma na internet, tem uma grande vantagem, que é permitir a estas pessoas, que não sabem pedir ajuda nos canais tradicionais, fazê-lo na internet, há quase um resguardar da sua situação".

Moratórias: bomba-relógio
As moratórias dos créditos foram um balão de oxigénio para muitas famílias, mas que pode estar a terminar. As moratórias privadas terminam em março e as públicas em setembro. Tanto o Banco Alimentar, como a Cáritas e a DECO, temem que o fim deste diferimento possa agravar a situação das famílias.

No ano passado, o gabinete de Natália Nunes recebeu 30100 pedidos de ajuda de famílias sobre-endividadas. Ainda não é possível perceber qual a evolução em 2021, mas a responsável adianta que em janeiro e fevereiro "se sentiu uma diminuição dos rendimentos das famílias". Explica que, "essencialmente quem nos pede ajuda são famílias compostas por três elementos, em que o rendimento neste ano de 2021 já é de 700 euros. São famílias que estão multi-endividadas: há um crédito à habitação que, em regra está a beneficiar de moratória pública, mas temos algumas situações em que é a moratória privada. Além do crédito à habitação, têm por regra dois créditos pessoais e dois cartões de crédito".

Perante este cenário, a responsável não esconde que "há uma grande preocupação com o fim das moratórias" previsto já para o fim de março.

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