Se tudo o que sobe tem de cair, 2024 deve ser o ano em que o balão do mercado do luxo vai esvaziar. Depois de um crescimento soberbo nos últimos anos, há sinais preocupantes para as marcas que habitam este espaço e que passaram incólumes à contracção do consumo.
Na verdade, tiveram uma performance acima da média, impulsionadas por liquidez na economia pós estímulos pandémicos, uma ascensão do consumidor aspiracional e a expansão do comércio electrónico, com plataformas a entregar a experiência única de luxo que os clientes procuravam.
Isto está a mudar. A venda da Farfetch, o primeiro unicórnio português, foi o sinal mais forte até agora de que o mercado do luxo inverteu a marcha. A plataforma online com mais de 500 boutiques parceiras acordou esta segunda-feira a venda à gigante sul-coreana Coupang, com saída de bolsa e perdas totais para os actuais investidores.
Foi a única forma de evitar a falência da empresa que liderou a inovação no mercado de luxo durante os últimos quinze anos. Dívida incomportável, aumento de custos e algumas apostas arriscadas levaram a Farfetch dos lucros aos prejuízos e de uma valorização de 23 mil milhões de dólares a uns meros 200 milhões. Sem liquidez, não tinha como sobreviver operacionalmente. A venda à Coupang não é uma capitulação total, porque a operação vai continuar, mas mostra como este final de 2023 está difícil para este espaço.
Não é um fenómeno isolado. Em Outubro, uma análise da RBC Capital Markets apontou para a probabilidade de que o próximo ano será de queda no luxo, até porque os níveis de crescimento - bateram-se recordes nos últimos três anos - se tornaram insustentáveis.
A LVMH, casa-mãe da Louis Vuitton, Fendi, Christian Dior e dezenas de outras casas de luxo, sofreu um revés na sua capitalização bolsista depois de divulgar os resultados trimestrais, com o preço das acções a cair para níveis de 2020. Há uma onda de revisões em baixa entre os analistas, que estão a olhar para os números e a prever uma correcção do mercado.
Um dos motivos para esta inversão é o recuo dos consumidores aspiracionais. Trata-se de um tipo de cliente que faz menos transacções e procura produtos de luxo que lhe são acessíveis, ao contrário do comprador de luxo abastado. O consumidor aspiracional está a comprar menos e isso nota-se em todo o tipo de casas, desde a Kering às marcas LVMH, uma vez que este grupo representa 40% dos compradores de luxo no panorama mundial.
Com as casas de luxo a focarem-se no comprador do segmento mais alto, a quem as flutuações na inflação não perturbam, este grupo aspiracional ficou para trás. E isso está agora a notar-se.
O caso da Farfetch é-nos mais próximo por ser uma história de empreendedorismo português, mas há outras plataformas com problemas. A Matchesfashion.com, que em 2017 foi comprada por mil milhões de dólares pela Apax Partners, deverá ser vendida ao Fraser Group por apenas 63 milhões.
A Net-a-Porter, que o grupo Richemont (Cartier) comprou por 5 mil milhões de euros em 2018, teve prejuízos de 137 milhões na primeira metade do ano, com uma queda de 10% nas vendas. O grupo tinha acordado a venda de 47,5% da plataforma à Farfetch, mas esse negócio caiu por terra por razões óbvias.
O luxo é uma das indústrias mais lucrativas da Europa, que tem sido particularmente atingida pela elevada inflação e os impactos económicos da guerra na Ucrânia. Sabendo-se que as vendas deste mercado vão crescer apenas metade do que cresceram em 2022, é difícil ver como é que 2024 não será de derrapagem.
É pena que empresas tão inovadoras como a Farfetch, que lideraram este sector em tecnologia e modelo de negócio, tenham sido apanhadas na curva desta maneira. Talvez a Coupang permita, de alguma forma, que essa ideia original portuguesa não seja perdida.